domingo, 16 de outubro de 2011

Reinvenção da trupe do Vivencial



Uma base de produção está em pleno vapor no sítio histórico de Olinda. O casarão de número 200 da Rua de São Bento, mais conhecido como a faculdade de direito da Aeso, foi ocupado pela equipe de Tatuagem, uma união de talentos que em breve culminará no primeiro longa de ficção de Hilton Lacerda. Não que a atividade cinematográfica seja novidade na cidade-patrimônio. A Parabólica de Claudio Assis funciona ali, virando a esquina. Na casa vizinha à da base montada pela REC Produtores estão os domínios de Alceu Valença, que esta semana encerrou as filmagens de sua Luneta do tempo. E rumo ao mar, Ladeira de São Francisco, está a Video nas Aldeias, de Vincent Carelli.

O que coloca Tatuagem em patamar diferenciado no cenário de produção local é combinação da estrutura privilegiada, que permite uma melhor organização e sintonia entre diferentes departamentos. No térreo estão o figurino, sala de objetos e a salão de ensaio. No primeiro andar, os departamentos de produção, direção, fotografia, financeiro e arte. De acordo com João Jr., tais condições fazem revelar o potencial da equipe. “Percebo uma evolução na carreira de muitos profissionais, principalmente de produção e arte, que têm atendido muito bem as demandas de produção de um longa-metragem”.

O projeto, de dimensões poético-anarquistas, recria livremente a experiência do grupo de teatro Vivencial, que conta com o cada vez melhor Irandhir Santos no papel de líder da trupe pós-tropicalista. As filmagens de começam no próximo dia 25, em Olinda, Recife, Bonito e Paudalho.

Aprovado pela Ancine para captação de até R$ 2,48 milhões, o longa ainda precisa captar 40% para a finalização e comercialização, mas já conta com a distribuição da Imovision, responsável por Cinema, Aspirinas e urubus e Verônica, de Marcelo Gomes. Apoios culturais como os da Prefeitura do Recife, UFPE e Aeso, diz João, são fundamentais para filmes de baixo orçamento. “Graças a eles, contamos com estagiários e licença para filmar em espaços públicos”.

Um deles é o Nascedouro de Peixinhos, onde uma construção está sendo erguida especialmente para o filme. Lá será a sede da trupe Chão de Estrelas, coletivo artístico ligado à tradição do circo e teatro. No papel do diretor está Irandhir, que descreve seu personagem como alguém que enxerga a beleza no gestos dos atores, para levar ao palco. “Somos desafiados a criar uma cena em poucas horas. Isso é muito estimulante. E Peixinhos será o espaço onde pessoas tolhidas pela ditadura pode ser homens, mulheres, bichos e bichas”, diz o ator, premiado ator por Tropa de Elite 2 e Febre do Rato. Não é de hoje que Irandhir fala em uma volta para o teatro, onde se formou. Curioso que isso venha a acontecer pelo cinema.

Parceira de Hilton desde o curta A visita (2001), Renata Pinheiro conta como a direção de arte expande o conceito do roteiro, que apesar de ambientado em 1978, não pretende reconstituir a época à risca. A ideia é construir um tempo ficcional. “Como espaço simbólico, a sede do grupo Chão de Estrelas revela o contexto político da época. As ruínas representam a destruição de um sistema. Material reciclado surge entre restos de obra, uma exuberância de cores sobre o cinza, seco e mofado do militarismo em decadência. Queremos ocupar aquele espaço de forma orgânica, como um câncer às avessas, que traz de volta à vida”, explica Renata.

A concepção da fotografia, em 16mm, combina a imagem limpa do cinema convencional com a linguagem experimental de aspecto envelhecido do Super 8, que será simulado por uma câmera Bolex e filmes vencidos. Ivo Lopes de Araújo, do coletivo cearense Alumbramento, explica a busca de uma precariedade apropriada para o conceito do filme. “A ideia é trabalhar com o erro próprio do teatro mambembe. Por isso preferimos a luz natural aos refletores. Procuramos a inadequação, algo que aproxime da condição dos personagens”.

Entrevista >> Hilton Lacerda: “Temos um público grande e mal aproveitado”

“A única coisa boa de ser só roteirista é que você pode botar a culpa no diretor. Agora, se algo não der certo, tenho que assumir”, brinca Hilton Lacerda. Roteirista dos mais atuantes do cinema brasileiro, ele é parte fundamental de uma filmografia que passa por Baile perfumado, Amarelo manga, Árido movie e o recente Febre do rato. Como diretor, assina dois curtas - Simião Martiniano, o camelô do cinema (em parceria com Clara Angélica) e A visita - e o longa documental Cartola - Música para os olhos, com Lírio Ferreira. Agora chegou o momento de realizar seu trabalho 100% autoral.

Em Tatuagem, Hilton Lacerda faz um livre retorno ao início de sua vida adulta, momento delicado em que sonhos se projetam. A dez dias do início das filmagens, ele fala ao Diario sobre o que está por trás do filme.

Como surgiu a ideia do filme?
Na década de 1980, li o livro Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan, que faz um apanhado da questão homossexual na cultura brasileira. Nele tem o personagem de Tulio Carela, que sempre me encantou. Em torno de 1995, tive acesso ao livro dele, Orgia, que ainda não tinha sido reeditado. Quando fui morar em São Paulo, em 1998, me tornei vizinho de João Silvério e falei com ele sobre a a vontade de filmar a história de Tulio. Ele me disse que achava mais importante olhar para o grupo Vivencial, que se tornou uma referência muito afetiva para a construção do roteiro. Mas o filme não é sobre o Vivencial, é sobre a influência que exerceu no Recife, o que aquilo tudo gerou, a expectativa de futuro.

Como você adaptou aquela realidade?
Através da história de um grupo de teatro anarquista, com foco no líder desse grupo de 12 atores, o Chão de Estrelas. Estamos há quatro semanas ensaiando as coreografias, direcionadas no sentido do deboche, do exagero. Clécio, vivido por Irandhir, comanda o processo ao lado do braço direito dele, interpretado por Rodrigo Garcia.

Tatuagem guarda certa semelhança com a vocação anárquica de Febre do rato, que também traz Irandhir como protagonista. São filmes-irmãos?
Escrevi os dois roteiros ao mesmo tempo. Ficava com medo da proximidade, mas hoje estou tranquilo. E Irandhir está no projeto antes de entrar em Febre do rato, antes mesmo de Baixio das bestas. Desde o começo do projeto, escrevi o personagem pensando nele.

Como líder da trupe, ele é seu espelho como diretor?
Ele é o homem da ponte, que está lá na frente, responsável pelo olhar teatral, pelo registro burlesco. Eu trabalho com o registro do cotidiano, de conflitos como o do soldado Fininha, que vem de uma cidade pequena e se encontra com Clécio. É quando o núcleo militar e dos artistas se misturam.

Como o filme se relaciona com a sua própria história?
Clécio tem um filho de 13 anos, que é a idade que eu tinha em 1978. Para mim, foi o momento em que comecei a ter vida própria, sair pra festa, o início da vida sexual. Havia o processo de abertura e do milagre econômico, tinha a expectativa do que iria acontecer no país. Era um respiro de sexo livre e pílula anticoncepcional, mas também um momento de certo desencanto, que logo depois levou um golpe grande, da Aids como fator moralizante do discurso. Depois houva a discussão de gênero, mas antes disso toda uma geração pagou um preço muito caro. Toda essa construção de futuro bateu com um fato prático, de que as pessoas estão correndo um risco e a ideia de pecado vinha junto. A discussão do filme gira em torno disso, do futuro sonhado e suas consequências.

Sem chegar a ele?
A ideia é abordar o que se sonha agora, e como isso pode reverberar no futuro. Como podemos imaginá-lo, de que forma podemos provocar consequências. Na época, a expectativa era a de um mundo libertário, em que as questões de gênero foram superadas. O filme quer reconstruir um passado em que se faz uma projeção utópica do futuro, que, na prática, é o nosso presente. No grupo tem um personagem, Joubert, que produz um filme de ficção em Super 8, que se passa no futuro. É um viés completamente anarquista, em torno de uma estrutura melodramática. Por um lado, é o Super 8 como uso político do cinema como arma. Por outro, é a estrutura mercadológica, de um cinema mais convencional.

Qual é sua intenção em abordar esse tema?
É a minha forma de tentar fazer as pazes com o presente. Acho o cinema estabelecido uma chatice, uma caretice tão grande, é raro alguém fazer uma desconstrução. O Brasil, quando tem a possibilidade de estar na ponta, fica representando o último estágio de algo esgotado. Em vez de investir na possibilidade de criar um público radical, o cinema brasileiro apela para a linguagem estabelecida, para satisfazer um mercado que está se esgotando. Pode ser uma estratégia boa para os próximos cinco anos, mas depois não fará sentido. Temos um público grande e mal aproveitado. Fazer filme de 150 mil espectadores no Brasil é uma glória, mas podemos dar um passo além.


Ficha técnica

Direção: Hilton Lacerda

Diretor Assistente: Marcelo Caetano

1º Assistente de Direção: Carol Durão

2º Assistente de Direção: Milena Times

Preparação de elenco: Amanda Gabriel

Produtor de elenco: Rutílio de Oliveira

Continuidade: Adelina Pontual

Produtor: João Vieira Jr.

Produtora Executiva: Nara Aragão

Diretora de Produção: Dedete Parente

Platô: Brenda da Mata

Diretora de Arte: Renata Pinheiro

Cenógrafa: Dani Vilela

Figurino: Chris Garrido

Diretor de Fotografia: Ivo Lopes de Araújo

Técnico de Som: Danilo Carvalho

Trilha Sonora: Helder Aragão

Patrocínio: Petrobras / Fundarpe - Funcultura / Chesf - Eletrobrás

(Diario de Pernambuco, 16/10/2011)

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