domingo, 23 de outubro de 2011
Lewis Trondheim: "Quadrinhos podem gerar menos dinheiro, mas são um ambiente criativamente mais rico"
Auto-representação do artista: "desenho mais animais do que humanos. Prefiro os traços simples"
Apesar de não ter livros publicados no Brasil, o cartunista Lewis Trondheim tem sido tratado com distinção em sua pasagem pelo país. Iniciados sabem que sua importância vai além do prestigiado Grand Prix de la Ville d'Angoulême, honraria máxima concedida em 2006 pelo festival de mesmo nome, tão importante para as artes gráficas quanto o de Cannes para o mundo do cinema. “Por dez minutos, senti certa agonia. Pensei que este seria o fim, mas depois aceitei como um desafio para fazer coisas novas”, disse Trondheim, durante encontro com cerca de 30 pessoas na Aliança Francesa do Recife, na última segunda-feira.
Para quem perdeu o encontro com o artista, a boa notícia é que Gênesis apocalípticos e Os inefáveis, a primeira versão brasileira de trabalhos de Trondheim, acabam de ser lançadas em volume único pela editora paraibana Marca de Fantasia, que o recebeu com a Aliança Francesa em João Pessoa.
O momento culminante de Trondheim no Brasil será hoje, dentro da programação do Rio Comicon, na capital carioca, ao lado de outro talento francês, o veterano Edmond Baudoin. “Essas convenções são chatas, mas pagam as viagens. Se for para dar autógrafos, prefiro ficar na França. Encontros como estes são muito melhores”, disse o artista.
A visita ao Recife está devidamente registrada em seu caderno de desenhos, em esboços como os feitos na Praça da República, enquanto tomava um café no Teatro de Santa Isabel. Como bom desenhista, ele é observador e não lhe escapou a peculiar árvore da Praça do Arsenal, no Recife Antigo, sustentada por uma estrutura de ferro. “Pensei: é bom que as pessoas se ocupem de árvores e nesse momento alguém passou e fincou uma garrafa de água vazia no tronco”.
Outras amostras de seu humor sarcástico e direto foram dadas durante a conversa, em que produziu uma história inédita inspirada em sua experiência no aeroporto do Rio. “Meu tema preferido é a decapitação de crianças”, declarou. Logo depois, amenizou para não chocar demais a plateia: “gosto de falar de situações de poder e sobre o livre arbítrio que as pessoas podem ter”.
Trondheim conta que começou tarde nos quadrinhos, pois não acreditava ter o talento necessário. Primeiro estudou publicidade e, aos 24 anos, passou a criar fanzines. O primeiro contrato para fazer um livro veio aos 30. Hoje, são mais de 150. Mesmo assim, e com o reconhecimento em Angoulême, ele não se considera um autor de sucesso e se define como preguiçoso. “Por isso desenho mais animais do que humanos e prefiro os traços simples”. Mas chegar ao simples, ao traço mínimo, não é tarefa fácil. É uma arte para poucos.
Trecho de Gênesis Apocalípticos, publicado no Brasil pela Marca de Fantasia
“Tive a sorte de ser bem recebido pela imprensa, mas vendo muito menos do que outros autores franceses. E ganho o suficiente para continuar fazendo o que gosto. Se vendesse mais, o dinheiro me obrigaria a fazer sempre a mesma série, o mesmo personagem. Seria um prisioneiro, não um autor”. Inevitável não lembrar de René Goscinny e Albert Uderzo, os criadores de Asterix e Obelix. “Antes do sucesso, eles criaram outra série, que não funcionou”.
Perguntado se tem algum guru, Trondheim responde que admira o trabalho de alguns artistas mas que procura não pensar muito nisso. “Para não me inspirar demais e correr o risco de fazer uma cópia ou comprometer a originalidade do trabalho; a França tem grandes mestres que são copiados, sem que exista uma compreensão do processo por trás do traço. Para mim, mestre é uma questão de atitude, como Bill Waterson, que desenhou Calvin e Haroldo por dez anos e parou para ficar íntegro, pois quiseram fazer merchandising com os personagens”.
Trondheim é também fundador da L’Association, editora com a qual ele, Menu, Stanislas, Mattt Konture, Killoffer e David B. (Epiléptico) renovaram o quadrinho francês no anos 1990. A ideia não era questionar o mercado editorial do país, um dos maiores do mundo, mas provocar mudanças estéticas.
Entrevista >> Lewis Trondheim
O que motivou a criação da L’Association?
Queríamos fazer algo diferente do convencional para a época, como narrativas autobiográficas e baseadas em sonhos, ou histórias feitas em um único quadro por página. Também fizemos desenhos sem texto, para outra pessoa escrever e vice-versa.
O que acha de adaptações dos quadrinhos para o cinema, como Gainsbourg - vie heroique e Persépolis?
Não assisti. E mesmo assim, prefiro os originais. Sou amigo de Joan Sfar (autor da HQ e do filme sobre Serge Gainsbourg) e disse a ele: se você vai fazer um filme, faça algo próprio, de forma autêntica. Na França há mais cartunistas do que cineastes. Posso compreender a frustração deles e a vontade de fazer cinema. Mas seria algo perigoso se eles fizessem sucesso no cinema. Isso significa mais dinheiro, e portanto, mais problemas. Os quadrinhos podem gerar menos dinheiro, mas são um ambiente criativamente mais rico, o que pode render resultados mais surpreendentes em termos narrativos do que o cinema.
O que importa mais, a qualidade do traço ou a ideia?
Se a HQ for feia, mas tiver ideias interessantes, o leitor vai chegar ao fim. O contrário também funciona assim. É comum artistas gráficos competentes fazerem bons desenhos, mas histórias nem tanto. Eu prefiro uma boa história a um bom desenho.
(Diario de Pernambuco, 23/10/2011)
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