segunda-feira, 17 de outubro de 2011
O show da realidade
Foi sem dúvida mais um momento histórico, talvez o maior dos oito anos de Coquetel Molotov. O motivo foi show de encerramento, a cargo dos rappers Racionais MC’s, que atraíram mais gente do que o espaço permite comportar. Se não havia como prever como terminaria a madrugada de sábado para domingo, no Teatro da UFPE, quando uma das portas de vidro foi destruída por invasores, a sensação era a de que tudo poderia acontecer. Apesar da produção ter demonstrado certo despreparo para lidar com a situação, é inestimável o valor cultural do ocorrido.
Nos últimos anos, o festival saiu do gueto indie ao convidar artistas famosos, como Milton Nascimento. Ampliar o público é algo que pega bem com os patrocinadores, que permitem uma zona de conforto para o festival convidar bandas pequenas e desconhecidas para seu igualmente modesto público sedento por novidades. Na noite de sábado, por exemplo, bons shows de Copacabana Club, Hindi Zahra, Rômulo Fróes e The Sea and Cake são a prova disso.
Quando o pernambucano China subiu ao palco, parte do público dos Racionais já ocupavam as cadeiras. Alguns demonstraram interesse no show, mas a maioria estava lá somente para ver os MC’s do Capão Redondo. Do lado de fora, alguns tentaram entrar sem pulseira, em vão. No entanto, quando o grupo começou a tocar, cerca de 70 pessoas espalhadas pelo câmpus conseguiram entrar. Na confusão, uma das portas foi quebrada, o que afugentou parte do público. Por um instante, o show foi interrompido e, para evitar mais problemas, luzes se acenderam sobre a plateia até o fim da apresentação. Tudo foi desmontado rapidamente no foyer do Centro de Convenções e o after party com DJs Golarolê foi cancelado. Em comunicado oficial, o evento descreve o episódio como “um pequeno tumulto”, que ninguém entrou sem pulseira e que o corpo de seguranças estava preparado para conter a situação. Não foi bem assim.
Durante o show, os Racionais se mostraram mais preparados para lidar com várias centenas de pessoas, prontas para entrar em processo de catarse coletiva, do que os oito seguranças engravatados, que deixaram a entrada a cargo dos bombeiros e foram para a a beira do palco. Na falta de pessoal, os próprios organizadores entraram na turma da contenção. O que se viu foi uma apresentação contida, em que hits como Capítulo 4 Versículo 3 e Diário de um detento foram sabiamente evitados. Era como lidar com um barril de pólvora, controlado unicamente pelo poder da palavra de Mano Brown, que habilmente conseguiu conciliar a Torcida Jovem do Sport e Inferno Coral. Na última música, o público invadiu o palco e os MCs cantaram protegidos pelos seguranças.
Por um lado, o Coquetel Molotov acertou ao promover um encontro inédito naquele espaço, entre habituées do festival e o público da periferia. Por outro, a organização demonstrou despreparo por não prever que poderia ser “engolido” pelas circunstâncias, como o consumo aberto de drogas, superlotação e o exército de fumantes, que elevou o risco de incêndio num teatro que já pegou fogo em 1997.
Momentos de pregação incitaram a consciência social – “esse país é seu, temos que reconquistar o que é nosso e está em mãos alheias”, disse um dos MCs, para logo elogiar Pernambuco, que estaria em situação melhor do que da última vez em que estiveram aqui. Outra fala certeira: “Racionais é risco constante. Adrenalina na direta. Na televisão é reality show, aqui é o show da realidade”.
Os indies quiseram brincar de periferia, mas suaram frio. Aprenderam na prática que, com periferia não se brinca, ainda mais se isso envolve seu espelho mais fiel. De qualquer forma, nada de grave aconteceu. E o resultado foi memorável. De proporções bíblicas, como Lobão descreveu o próprio show, na noite anterior.
Sexta-feira - Marcada por shows medianos, a noite de sexta foi salva por Lobão, atração de última hora que se mostrou das mais acertadas. O compositor carioca demonstrou vitalidade incomum para um senhor de 50. Ele e banda fizeram uma apresentação vibrante, equilibrada no fio da navalha, entre técnica e emoção. Lobão, que já fez shows em estado deplorável, como o do Abril Pro Rock em 2001 ou rodeado de vinte violões, em versão acústica no mesmo APR em 2009.
Elétrico, Lobão se mostrou em sua melhor forma. Invocou os parceiros mortos, Cazuza e Julio Barroso. Como guitarrista, demonstrou competência em solos instigantes. Rock na veia, redondo, potente, direto ao assunto. Lavou a alma do público que o esperava desde abril, quando teve o show cancelado na Concha Acústica, ao lado do teatro. E apesar de algumas falhas de som no começo do show, Lobão não teve muito do que reclamar, pois as condições de palco oferecidas pelo festival foram muito boas. “Obrigado Recife, foi lindo. Foi bíblico!”, disse o músico, no final.
De uma forma geral, antes do tsunami provocado pelos Racionais, a organização do Coquetel Molotov se mostrou exemplar. No foyer, stands dos patrocinadores, feirinha alternativa e barracas de alimentação conviveram harmonicamente. O espaço da Petrobras ofereceu um terceiro palco, para bandas gravaram seus vídeos. Já a Sala Cine, que abrigou o lado B da programação, merecia melhor climatização, o que rendeu a ela o apelido de “Sauna” UFPE.
(Diario de Pernambuco, 17/10/2011)
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