sábado, 1 de outubro de 2011
Brasília, noite 4 - Armadilhas da memória
O primeiro longa inédito do 44º Festival de Brasília foi muito bem recebido. Inspiradíssimo na linguagem teatral, Hoje desponta na competição como um dos favoritos aos Candangos. Um deles, o de melhor atriz, deve ir para Denise Fraga, em papel dramático pouco usual para atriz marcada pela comédia. Em 1996, a diretora Tata Amaral já havia arrebatado Brasília com o longa de estreia, Um céu de estrelas, que tem alguns pontos em comum com este filme, como a reclusão de um casal em um único ambiente, o apartamento. No entanto, a força de Hoje está na maneira em que aborda os anos de chumbo da ditadura brasileira, através de suas consequências na psiqué de ex-militante.
Para realizar Hoje, Tata convocou antigos colaboradores, como o roteirista (e crítico) Jean-Claude Bernardet, o diretor de fotografia Jacob Solitrenick e a montadora Idê Lacerda. Assim como Um céu de estrelas, a história adapta um romance de Fernando Bonassi, Prova contrária. Bernadet disse que seu método foi o mesmo: não ler o livro, mas deixar que a diretora o contasse: “quis descobrir o que ela vê no texto. Ali se formaram os alicerces, como a ideia de se reduzir ao apartamento”.
O “hoje” do filme se passa em 1998. Vera (Denise) acaba de comprar um apartamento e, enquanto recebe a mudança, se surpreende com a volta do companheiro desaparecido nos anos 1970, vivido pelo uruguaio César Troncoso. A paranoia logo se instala e ela o esconde dos funcionários da transportadora, da síndica indiscreta, deixa janelas semicerradas. Na penumbra, a memória se mistura à arquitetura.
Apesar de algumas incoerências “de época” (em 1998 não havia celulares com ringtones e encanadores 24h na internet) e alguma descontinuidade (perdoável, já que o real se mistura à memória), o filme convence pela atuação e um incrível trabalho de luz. Para representar o trauma da personagem, portas e paredes são banhados em imagens artificiais, projetadas nos próprios atores, como em outro filme recente que trata da ditadura, Uma longa viagem, de Lúcia Murat. E a fotografia final, que representa a liberdade atingida pela personagem, é uma das mais lindas do cinema nacional. Hoje é dividido em “atos” e conforme avança desvela novos territórios da memória de Vera, cujo comportamento levou Denise Fraga a aceitar o papel. “Foi a personagem mais complexa que já fiz”.
É curioso perceber como se fala da necessidade de lembrar dos crimes cometidos durante o militarismo, quando suas vítimas apenas querem, em vão, esquecer. Para a diretora, é preciso debater aquela época de forma mais incisiva. “Não enfrentamos os nossos fantasmas. Ao contrário de outros países, não punimos os nossos torturadores”.
(Diario de Pernambuco, 01/10/2011)
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