sábado, 15 de outubro de 2011

O tempo e o cinema: Sudoeste, de Eduardo Nunes



Como no ano passado, em que exibiu Ex-Isto, de Cao Guimarães, o Festival de Gramado selecionou como filme de encerramento outro filme incomum. Mesmo após nove dias de atividade intensa, a sessão de Sudoeste, primeiro longa do carioca Eduardo Nunes, gerou fascínio e estranhamento. Tanto pela fantástica história de Clarice, que em 24 horas passa por todos os estágios da vida, quanto pelo rigor estético enquadrado em formato de tela 3.66:1, um pouco mais estreito do que o cinemascope. A sensação é a de estar diante de uma obra ao mesmo tempo nostálgica e inovadora.

A nostalgia remete ao cinema silencioso, com ênfase em Limite (1931), de Mário Peixoto. O russo Andrei Tarkoviski (1932-1986) é outra referência é assumida pelo diretor, que já trabalhava o conceito desenvolvido em Sudoeste em seus curtas-metragens nos anos 1990. “Existem também influências de realizadores mais narrativos, como Léon Hirzman, David Lean e Sergio Leone, mas Tarkovski é a maior. Não apenas pelo seu cinema, mas por todo seu respeito a vida, que é tão belamente contado em no livro Esculpir o tempo. Tarkovski demonstra que o cinema pode ser algo único, de conseguir compartilhar uma experiência espiritual durante uma projeção”.



Nesse sentido, Sudoeste é um convite à contemplação. A fotografia em preto-e-branco de Mauro Pinheiro Jr. é de uma poesia rigorosa, milimetricamente construída. O trabalho de sonoplastia - que investe em sons da natureza como o vento e chuva - e da figurinista pernambucana Luciana Buarque (colaboradora do Luis Fernando Carvalho em Hoje é Dia de Maria, A Pedra do Reino) são igualmente incríveis. No elenco Simone Spoladore, Dira Paes e o paraibano Everaldo Pontes fazem atuações memoráveis.

Sudoeste foi filmado no Pontal do Massambaba, no Arraial do Cabo (RJ), uma antiga vila de salineiros que estava abandonada por mais de 40 anos. Nunes conta como foi encontrar esse lugar ermo, perdido no tempo. “Foi quase um milagre. O roteiro que eu e o Guilherme Sarmiento escrevemos se passa numa vila de pescadores que existia apenas em nossas cabeças. Como o filme tem um tom de fábula, era preciso encontrar uma locação que transmitisse essa ideia de abandono, do tempo atuando sobre as coisas e pessoas”.



O formato 3.66 é tido por Eduardo como um algo novo, inspirado em experiências de Abel Gance nos anos 20 e 30 em filmes como A roda e Napoleão, em que o quadro se adequava ao assunto tratado. “Acho que perdemos a vontade de experimentar para aumentar a potencialidade de uma narrativa”. Isso, aliado ao PB e aos 128 minutos de duração, colocam Sudoeste na contramão do cinema comercial. Por enquanto, não há data de lançamento ou outras exibições em festivais. “Acho que a história do filme está acima disso e todos os outros elementos estão em função desta história”.

Entrevista >> Mauro Pinheiro Jr.: "Abrimos mão da precisão tecnológica"

O fotógrafo pernambucano Mauro Pinheiro Jr. tem no currículo mais de 30 filmes, entre eles Linha de Passe, Os famosos e os duendes da morte e o recente VIPs. É parceiro constante de Camilo Cavalcante, Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, com quem desdenvolve novos filmes. Em entrevista ao Diario, ele conta que trabalhar em Sudoeste foi algo novo e desafiador.

Em preto-e-branco, o excesso de luz do litoral transforma o que seria uma paisagem tropical em algo gelado. Foi essa a intenção?
Acho que o céu azul, colorido e muito belo iria prejudicar o filme. O preto-e-branco, o formato de janela, o figurino, a arte, apresentam com uma coerência que foi fundamental. Foi a melhor solução para Sudoeste, que tem um universo próprio, a ação do tempo na vida da personagem, o tom de fábula, o PB se aproxima disso.

Solução bem diferente da usada em Cinema, Aspirinas e urubus.
Sim. Eu e Marcelo (Gomes) nunca pensamos no PB, mas também não queríamos um sertão de cartão postal. Nosso personagem era um alemão de olhos claros, que vai para região de luz abundante, e dali veio a inspiração para aquele plano de luz que fere o olho e que vai se acomodando mas nunca atinge a claridade normal. A luz permanece clara para sugerir que o personagem não se adapta nem fisicamente, nem culturalmente.

A pós-produção interferiu no aspecto das imagens de Sudoeste?
Filmamos em película 16mm e ampliamos digitalmente para 35mm, e o processo digital permite um controle enorme, fizemos questão de dar uma “erradinha”, deixar o branco invadir um pouco o preto, para não ficar correto demais. Buscamos a falta de controle do processo ótico. Abrimos mão da precisão tecnológica absoluta criando um recurso de linguagem.

Ao adotar a proporção 3.66, Sudoeste quebra com os padrões de formato de tela?
Uma das grandes questões do cinema desde seus primórdios foi desenvolver um formato padrão para que os filmes pudessem ser distribuídos mundialmente. Câmeras e projetores adotaram como padrão o formato de negativo 35mm de 4 perfurações. Hoje em dia, a finalização eletrônica nos permite filmar em qualquer bitola desde que, no final, seja respeitado o formato padrão de projeção. O que fizemos foi desenvolver um formato de imagem novo, mais panorâmico, mas que ainda fosse compatível com os projetores atuais de película. Filmamos em Super 16mm e aproveitamos o benefício da finalização eletrônica para ganhar uma liberdade estética desafiadora.

Como vocês chegaram a esse formato?
Eduardo sempre quis trabalhar com o formato 2.35, ideal para aquela região, horizontal. Antes de filmar, fotografamos a locação e no primeiro exercício de decupagem fiz recortes horizontais com o photoshop nas fotos de pesquisa do momento onde a garota sai da cabana e descobre o mundo. Imaginei um quadro que não tivesse o corpo humano como referência. O formato quadrado valoriza o corpo, encaixa o ser humano dentro dele. Nós tomamos não o corpo, mas o espaço como medida e o ser humano, se encaixando dentro desse espaço. Naquele momento, tivemos certeza de que buscaríamos a viabilidade daquele formato.

Como foi a experiência?
É como se estivesse zerando o olhar. É como pensar em uma outra língua, que não tem tradução. Quando você filma muito no mesmo formato, acaba viciando o olhar, é algo automático encaixar os objetos no lugar certo. Não estávamos pisando em campo completamente desconhecido, ao mesmo tempo não ficamos refém disso. O quadro não se tornou um assunto, não distraia o set. Foi uma questão minha e de Eduardo. Não foi uma questão de virtuose, logo nos acostumamos.

Você trabalha com Eduardo há quase 20 anos. Como funciona a dinâmica de criação?
Sudoeste foi muito singular, por mais que tenha características em comum com o que já fizemos. Em 1998, com a primeira versão do roteiro, visitamos locações e começamos a decupar o filme. Quando a filmagem ganhou perspectiva mais concreta, jogamos a decupagem fora e olhamos para o filme como somos agora. No começo, me angustiava imaginar onde posicionar a câmera. Hoje isso me impulsiona, é uma pergunta instigante, é um dos grandes estímulos para filmar, para procurar a linguagem. Eu procurava a certeza e hoje vejo que a dúvida é algo mais interessante. Ter esperado esse tempo talvez tenha sido bom para podermos pensar nisso.

(Diario de Pernambuco, 02/09/2011)

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