domingo, 2 de outubro de 2011

Vladimir velho de guerra

Autor de obras seminais como O país de São Saruê (1971), Conterrâneos velhos de guerra (1990) e O engenho de Zé Lins (2007), o documentarista Vladimir Carvalho não precisa provar mais nada a ninguém. Mesmo assim, aos 76 anos, ele reafirma a vitalidade criativa com seu mais novo filme, Rock Brasília – anos de ouro.

Lançado no Festival de Paulínia, onde foi eleito o melhor de sua categoria e agora no Festival de Brasília, em que arrastou uma multidão para a cerimônia de abertura, o longa promove um panorama íntimo, político e social de uma geração de músicos que vieram a fundar as bandas Legião Urbana, Plebe Rude e Capital Inicial.

Paraibano de Itabaiana, ainda criança Vladimir morou por dois anos no Recife, período suficiente para guardar lembranças. “Vivenciei muito a cidade, onde andava pelos bairros a pé”. Cícero Dias, a quem admira, não chegou a conhecer, mas quer que seja o tema de seu próximo documentário. Sobre o Festival de Brasília, do qual faz parte do júri da competição de longas (Rock Brasília está fora do páreo por conta da premiação em Paulínia), o veterano diretor não emite opiniões precipitadas. Prefere acreditar em seu histórico potencial. Leia mais na entrevista a seguir.

Entrevista >> Vladimir Carvalho: "Não estou a fim de renovar linguagem, meu objetivo é comunicar"

Como foi o seu tempo no Recife?
Aos nove anos, fui expulso de Itabaiana porque meus pais achavam que lá eu não ia me desenvolver. Fui para a casa da minha tia, no bairro de Água Fria. A zona do cais, onde é hoje o Marco Zero, sempre foi interessante. Andava de bonde, com aqueles trilhos brilhosos. O ano era 1945, eu cheguei a assistir, no Porto do Recife, à chegada do primeiro esquadrão da FEB (Força Expedicionária Brasileira), tocando músicas. Em seguida teve o carnaval da vitória.

E de onde vem a vontade de fazer um filme sobre Cícero Dias?
Estava fazendo o filme sobre José Lins do Rego em Paris, estava procurando uma foto dele com Cícero. Fui numa exposição dele e me deparei com uma frase na parede da galeria. Então visitei o ateliê, onde deitei na rede dele e entrevistei a viúva dele e sua filha, que é afilhada de Picasso.

Qual o seu método para conduzir um documentário?
Quando gravo, nem sempre sei que filme estou fazendo naquele momento. Por exemplo, quando tiraram uma favela de onde seria a Ceilândia, procurei fazer esse registro, pois aquilo me pareceu importante. Depois, filmei a chegada dos tricampeões para cumprimentar o presidente da República. Anos depois, percebi a atração entre os materiais e isso culminou em Companheiros velhos de guerra. Não é método, é circunstância.

Foi assim com a entrevista inédita com Renato Russo, gravada em 1988 e só revelada em Rock Brasília?
Naquela época eu era professor da Universidade de Brasília e procurei fazer com que os alunos se interessassem pela cidade de forma ampla, pois ela fervilhava de temas sociais, políticos, culturais. Pedi aos alunos que trouxessem interpretações pessoais, na linguagem visual do cinema. Entre as outras coisas surgiram mais de 200 bandas de rock. Mas aquilo não era exatamente um filme. Quando as bandas voltaram do Rio e de São Paulo, em 1987, o Capital Inicial abriria o show do Sting e fui filmar, pois isso me pareceu importante.

Além da trajetória das badas, Rock Brasília conta também a história recente da cidade que você escolheu para morar.
Cheguei em Brasília em 1970 para participar do festival com o curta A bolandeira. Dez anos antes, chegaram alguns dos pais dos músicos, atraídos pelo projeto da cidade, pela figura do Juscelino, por uma vida diferente. Foi uma coisa de coração, foi onde eles quiseram educar os filhos. Essa mística que motivou os pais reflete na formação dos filhos, que criaram uma ligação com a cidade e herdaram a vontade de viver uma utopia, um experimento, só que de forma mais anarquista.

No filme, você se alinha mais com o ponto de vista dos pais do que com o dos filhos.
Sendo que não tive filhos, é uma identificação geracional. Por isso, tomei a atitude de não levar os filhos deles tão a sério. Eles não eram engajados ou militantes, mas reagiram à pressão da sociedade e da família. É um rito de passagem natural da idade, tem a libido, a descoberta como ser humano. Na prática, foi algo intuitivo, quase inconsciente.

Nesse sentido, seu interesse pelo rock é menos estético e mais político, como instrumento de contestação sociocultural?
Sim, o faça você mesmo do punk, eles levaram isso a sério. Quando a Legião Urbana e Plebe Rude foram para o show Patos (Minas Gerais) e foram presos é um marco, pois eles percebem que estão mexendo com o poder, o resquício da ditadura. Mas, bem antes disso, me identifiquei com o rock através de meu irmão mais novo, o fotógrafo Walter Carvalho. Sou 13 anos mais velho e quando minha mãe enviuvou, tive ele no colo por muito tempo. Quando ele começou a sair para bares de rock, em 1957, eu tranquilizava a minha mãe. Lembro de ter assistido Sementes de violência, de Richard Brooks, em que um professor lida com uma classe de rebeldes e, na hora das músicas, o Cine Rex de João Pessoa teve as cadeiras cortadas com navalhas pelo público que dançava. Aquela coisa primitiva me deu a possibilidade de examinar o rock como fenômeno.

Rock Brasília costura depoimentos, imagens de arquivo e sequências dramatizadas. Fale um pouco da linguagem do filme.
Uso elementos da narrativa clássica, uma jornada epicrônica de uma vida coletiva. Há a partida, a motivação para vencer o ambiente doméstico, provinciano. É uma história de perseverança, sobre sair do conforto familiar, do zelo dos pais temerosos, sobre ousar. Há os empecilhos, as pessoas que guardam templos sagrados, o herói e mentor, no caso, Renato Russo, que era o líder natural, a cabeça privilegiada. Não usei tanta música para que o público não se distraísse dessa odisseia que foi a história deles. Guimarães Rosa disse que o real não está na saída nem na chegada, mas na travessia. E há a ressurreição, no momento em que o Capital Inicial volta após a morte de Renato. Tudo isso está na narrativa clássica. Faço isso sem me diferenciar do restante do meu trabalho. Não sou do tipo que busca primeiro a forma. Ela virá de qualquer maneira, não vou procurar firula. Não estou a fim de renovar a linguagem, meu objetivo é comunicar.

Seu filme estreia nacionalmente ainda este mês. De que forma o cinema brasileiro pode ter mais aceitação comercial?
Esse momento é riquíssimo, de aceitação internacional em casos isolados, como o de Fernando Meirelles e Walter Salles. A produção existe mas não temos a plenitude do nosso território, não estamos no mercado. Concordo com as criticas à Ancine, no sentido de haver uma resposta mais objetiva com relação ao desenvolvimento do cinema brasileiro. Há uma “caixa preta” de recursos bloqueados e a postura de delegar apenas o mercado como regulador. Em termos de recursos, temos a possibilidade de ampliar não só o financiamento dos filmes, como a ocupação do mercado.

Por um lado, há as facilidades tecnológicas. Por outro, imposições de mercado e patrocínio. Está mais facil ou dificil fazer cinema atualmente?
Cinema sempre foi área sofrida e a tecnologia criou grande alento, gerando rapidez e baixo custo. O problema é que nossos filmes não frequentam o mercado, temos mais filmes do que possibilidade de exibição. Isso é cruel, ter vários tipos de cinema sendo feitos, que deveriam chegar ao público de forma mais intensa, dentro de um plano organizado. Documentários podem expandir para a televisão, salas convencionais, banda larga. Devemos compartilhar o bolo geral, conseguir mais visibilidade.

Após décadas no comando de Fernando Adolfo, o Festival de Brasília mudou de direção e passa por mudanças pelas quais vem sendo criticado. Qual sua visão sobre o assunto?
Geralmente, dar uma olhada no retrovisor é sempre benéfico. A troca de comando é a oportunidade de rever o que foi feito, acertos e erros. Não sei se vai acontecer, mas o momento é de virada. O próprio contexto de Brasília, que inclui uma faculdade e um polo de cinema, a troca de governo local, pode resultar numa reforma, num aprimoramento dos instrumentos. Brasília já foi considerada o terceiro polo de produção de cinema. Perdemos essa condição por falta de atendimento às demandas locais. A reforma do festival faz parte de uma atitude para avançar. O poder local, em raríssimas ocasiões, teve a percepção de reconhecer o papel tem a cultura. Iveste uma fábula de dinheiro com publicidade quando Brasília poderia ser um polo que irradia cultura. Mas ela é como uma capital provinciana. Vivemos nessa maquete arquitetada por Oscar Niemeyer, em que as pessoas não ocupam as ruas, delegam isso à estudantada. Arruda, por exemplo, não seria exonerado não fosse o enfrentamento dos estudantes.

Após tantos anos de cinema, o que lhe instiga a rodar um filme?
Aquilo que me comove, que afeta o cidadão Vladimir Carvalho. Isso talvez seja o primeiro impulso, pois a realidade social está implícita no que eu faço. Trabalho à mercê desse impulso.

(Diario de Pernambuco, 02/10/2011)

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