domingo, 1 de março de 2009

Glauber Rocha ainda pulsa



Se estivesse vivo, o cineasta Glauber Rocha completaria 70 de nascimento no dia 14 de março. Criador compulsivo, ele foi o ponta-de-lança do Cinema Novo, movimento que colocou o país na vanguarda do cinema mundial. Desde que morreu, em 1981, sua imagem é comumente ligada a de "gênio" ou "louco", inclusive por gente que nunca assistiu a nenhum de seus dez longas e oito curta-metragens. Muito dessa aura provém da busca pessoal do diretor, motivado por uma urgência artística/política em se expressar. Essa inquietação está traduzida em obras que buscaram uma linguagem própria para o cinema feito nos trópicos.

Por si, a data redonda já é bom motivo para lembrar deste baiano de Vitória da Conquista. No entanto, há mais motivos para comemorar, já que poucos meses atrás foi lançada uma caixa com quatro de seus filmes restaurados em DVDs duplos com extenso material extra como documentários, entrevistas e depoimentos. A caixa, produzida com recursos da Petrobraspelo Grupo Novo de Cinema e TV e distribuída pela Versátil em parceria com a Riofilme, faz parte de um projeto que colocará à disposição toda a filmografia do diretor. Nesta primeira leva, volta à tona o seminal Barravento, Terra em transe (mais o curta Maranhão 66), O dragão da maldade contra o santo guerreiro e A idade da Terra, desafiante epitáfio de quem via o cinema como instrumento de poesia e mudança social.

De acordo com Paloma Rocha, filha de Glauber e coordenadora do projeto que conta com a curadoria de Joel Pizzini, a recuperação digital e distrubuição de cada filme custou em média R$ 1 milhão. A falta de patrocínio para a segunda etapa colocou na fila de espera o essencial Deus e o diabo na terra do sol (remasterizado em 2002 com tecnologia digital standard de 524 linhas, bem diferente de um restauro em HDTV), e filmes menos conhecidos pelos brasileiros por terem sido filmados fora do país: Cabeças Cortadas (Espanha, 1970), O Leão de sete cabeças (Congo, 1971), Câncer (filmado em 1968 no Brasil emontado em 1973, na Itália), o documentário História do Brasil (Cuba / Itália, 1974), e Claro (Itália, 1975).

Paloma Rocha explica que, de todo o trabalho, o momento mais complicado foi o restauro de O dragão da maldade (conhecido fora do país como Antonio das Mortes), que literalmente renasceu das cinzas, pois o original foi destruído num incêndio em 1973, na França.

Para falar sobre vida, obra e legado de Glauber Rocha, o Diario de Pernambuco entrevistou um dos maiores estudiosos de sua obra, o professor Ismail Xavier. Desde 2002, ele coordena a Coleção Glauberiana, dedicada a republicar na íntegra a crítica cinematográfica deste diretor tão combativo com as palavras quanto com as imagens que produziu. Leia mais na entrevista a seguir.

Entrevista // Ismail Xavier: "Glauber viveu a tensão de quem batalha pela consolidação e se instala do lado da invenção estética"

Glauber propôs uma linguagem própria para o cinema brasileiro, desvinculada da narrativa dos países dominantes. Onde podemos encontrar traços dessa estética nos filmes de hoje?
Alguns traços, como o uso da câmera na mão, nos filmes de ficção, e a montagem que privilegia o salto e a descontinuidade permanecem como uma escolha frequente em filmes de autor em todo o mundo. A ruptura com os princípios do cinema clássico, em termos da construção do espaço e do tempo no cinema, gerou uma liberdade de estilo que tem sido explorada, claro que não mais com aquele sabor de ruptura, por muitos cineastas brasileiros, europeus e mesmo norte-americanos. A mudança de regime na lida com a imagem em movimento tornou a mistura de estilos quase que um novo código, como se vê na atual combinação, no mesmo filme, do que antes era visto como próprio à ficção ou ao documentário que não podem ser vistos como gêneros claramente distintos. Isto é uma herança dos anos 1960 que teve em Glauber um dos seus artífices.

Glauber foi melhor compreendido no exterior do que no Brasil?
Ele foi tão bem recebido no Brasil como no exterior. Desde o início, teve aqui uma parcela da crítica a seu lado, tal como no exterior, ressalvado que a questão do compreender é mais complexa do que a boa recepção e a adesão. Aqui, houve mais polêmica, porque foi o mundo em que ele atuou de imediato, mas houve em todos estes anos um movimento de adesão e de busca de compreensão que se traduz na enorme quantidade de textos sobre ele, e na posição privilegiada em que ele é sempre colocado. Na Europa, o Cinema Novo emergiu como o "bom objeto" que reunia a paixão do cinéfilo e a paixão política de uma forma original, dado que encantou, por exemplo, italianos e franceses. Mas não se pode dizer que o compreenderam melhor.

Em 1971, Glauber declarou que o Cinema Novo estaria extinto. Sendo assim, como podemos entender ou classificar sua produção posterior?
Conforme o ponto de vista, pode-se dizer que o Cinema Novo, considerada sua proposta original, se dissolveu ou setornou algo distinto em 1964, em 1968 ou nos anos 70. Em cada fase, permaneceu o sentido de uma política de grupo e a defesa do cinema de autor, mas se alterou a estética e o modo de se entender a relação com o público e com a política, já que o contexto era outro. Neste sentido, os filmes que ele fez a partir de 1970 mostram tais alterações, sempre dentro de uma proposta radical de um cineasta que, embora tenha encontrado a oportunidade, recusou-se a adaptar o seu cinema ao gosto do "cinema de arte" internacional de consumo. Seu cinema permaneceu um desafio, um desconcerto, uma provocação, dentro da sua idéia de uma estética da violência, ou da crueldade se quisermos usar os termos do teatrólogo francês Antonin Artaud.

É impossível dissociar engajamento político e a dimensão poética nos filmes de Glauber. Em que fontes ele bebeu? Há quem assuma essa herança?
Glauber fez avançar o espírito do modernismo, dos insatisfeitos com os termos em que se deu a modernização e que expressaram de modo crítico, na forma de sua arte, a relação tensa com o mundo em que vivemos. Suas referências vão do modernismo brasileiro dos anos 20 a Buñuel, Eisenstein, Rossellini,Visconti e Godard. Em termos dramáticos, ele misturou Bertold Brecht e Artaud, poetas radicais, cada qual a seu modo. Quanto à herança, há algo do Glauber-Visconti em Luiz Fernando Carvalho, do Glauber-estética-da-violência em Cláudio Assis, do Glauber-cinema-de-invenção em seu filho Erik Rocha, para citar apenas alguns casos. Na confluência do político e do poético, lembrei muito de Glauber, e também do Teatro Oficina, quando assisti em janeiro ao excelente Canção de Baal, de Helena Ignez, que parte de Brecht, mas também convoca Artaud.

Glauber buscou pensar o país através do cinema. Qual a relevância desse movimento hoje?
O cinema contemporâneo continua a pensar o país. Sua alteração maior face ao Cinema Novo se dá na forma, pois há uma tendência a se procurar a dramaturgia clássica, a se inserir os filmes nos códigos mais usuais do filme-de-ação espetacular. Um exemplo é a presença, no cinema, da questão da violência social, da crise das instituições do Estado-nação, temas que compõem os espetáculos mais convencionais, mas que ganham maior densidade nos documentários que, a meu ver, dialogam de maneira mais intensa com o legado de Glauber, apesar das diferenças estéticas.

Como entender a troca de elogios entre Glauber e o General Golbery, ideólogo da ditadura?
Foi uma peça da Realpolitik de Glauber que, a partir de 1974, configurou um teatro político em que era preciso apostar num redirecionamento do projeto nacional que passava pelo diálogo com os generais que administravam a lenta abertura. De forma discreta e sem proclamações simbólicas, houve um acordo político não assinado, que definiu a forte presença do pessoal do Cinema Novo na gestão da Embrafilme a partir de 1974. Exemplo de um pragmatismo muito recorrente na política brasileira, na política da cultura e na do Congresso, tal como se pode ver hoje no jogo do poder.

Enquanto obras como Tropa de Elite e Cidade de Deus se comunicam com milhões, a obra de Glauber permanece restrita a um círculo de intelectuais e cinéfilos. Seria um sintoma de que Glauber falhou na luta por um cinema independente e popular?
A luta de Glauber, e de outros cineastas, seja em 1960, seja hoje, supõe a defesa de um cinema sustentável que mantenha o diálogo com grandes audiências e, dentro dele, a defesa de um lugar para a invenção estética e para a visão crítica da experiência social. Uma cinematografia precisa desses vários segmentos para respirar e ser conseqüente. Glauber viveu a tensão de quem batalha pela consolidação e se instala do lado da invenção estética. O seu cinema foi de poucos, a curto prazo, mas atingiu uma enorme audiência ao longo dos anos, porque cinema de qualidade. A noção do popular é sempre relativa, pois um sucesso de hoje pode ser um filme esquecido amanhã.

Nos idos dos anos 1970, Glauber desenvolveu sua escrita de forma divergente inclusive da gramáticaconvencional. Como o senhor analisa esse lado escritor do cineasta?
O lado escritor de Glauber ganhou expressão muito cedo, na agilidade dos textos do jovem crítico e composição das palavras em seus filmes, quando certos traços de estilo foram associados, no caso de Deus e o Diabo, com a tradição literária que culmina em Guimarães Rosa. Ao escrever seu romance, Riverão Sussuarana (1978), Glauber buscou de maneira mais explícita a aproximação com Rosa nessa vontade de experimentar com a linguagem. Este detalhe da grafia deriva disto, mas não é a sua expressão mais interessante, embora seja a que se fez mais visível como estranhamento, singularidade provocativa.

Em março Glauber completaria 70 anos de vida. Considerando o desenrolar de sua trajetória, e o destino de seus companheiros de Cinema Novo, há como imaginar no que estaria envolvido hoje?
É difícil dizer, e não gostaria de especular a partir de sua ausência. Certamente não seria o Glauber dos anos 60, nem o dos anos 70, pois vimos o quanto se transformou até 1981, como é próprio de seres exasperados, com um senso forte de urgência no confronto com o social, que não isolam uma pequena parte do mundo para fazer o seu jogo, mas abraçam tudo e vivem no próprio corpo as asperezas de cada conjuntura.

publicado no Diario de Pernambuco

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