domingo, 9 de agosto de 2009
Com sede de cinema - entrevista com Lírio Ferreira
Quando criança, Lírio Ferreira queria ser engenheiro. Aos 15 anos, prestou vestibular para arquitetura, mas não passou. Era cinéfilo, mas nem passava por sua cabeça ser cineasta. Jogava futebol, treinava no juvenil do Sport. Logo trocou a bola pelo surfe. Na sequência, tentou jornalismo. Desta vez entrou. Ia pra faculdade de bermuda, queimado de sol. Lá, juntou-se a uma turma que em pouco tempo ganhou o mundo com um cinema instigante e criativo. Ao lado de Paulo Caldas, dirigiu Baile perfumado (1996). Com o reconhecimento, ganhou aval para rodar Árido movie (2005) com atores famosos como Selton Mello, Guilherme Weber, Giulia Gam, Renata Sorrah e Matheus Nachtergaele.
No documentário musical Cartola - Música para os olhos (2007), dividiu direção com Hilton Lacerda, parceiro de longa data. O projeto repercutiu positivamente e abriu caminho para O homem que engarrafava nuvens (2008), que na última terça-feira ganhou o prêmio da crítica no 19º Cine Ceará.
Após temporada no Rio de Janeiro, Lírio está de volta ao Recife, onde pretende permanecer até começar as filmagens de Sangue azul, sua volta ao cinema de ficção. Em entrevista ao Diario, ele fala sobre carreira, cinema e boemia, esta última, da qual tem sido personagem recorrente. Critica a "monocultura" do cinema comercial, capaz de manter dois terços das salas ocupadas por apenas dois filmes. E convoca a nova geração de cineastas pernambucanos: "não vamos mais viver de ciclos".
Entrevista // Lírio Ferreira: "Quero trabalhar mais no Recife"
Realizar o filme alterou sua ompreensão sobre a obra de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira?
Não há como sair incólume da experiência de fazer um filme sobre o universo do baião. Sempre ouvi , sabia da importância, mas não tinha a dimensão de como tudo aconteceu, até onde chegou.
Você pretende continuar na carreira de documentarista?
Pretendo, mas não agora. Quero voltar a trabalhar com atores. Adorei a experiência, foi muito bom fazer esses filmes, principalmente por relativizar a barreira entre gênero e bitola. Futuramente, penso em fechar uma trilogia. Passei pelo samba, o baião e quero fechar com algum personagem que representasse o pop e o rock.
E Sangue azul, quais são os detalhes?
Não tem nada muito definido. O primeiro tratamento do roteiro está pronto, mas ele vai mudar. Posso adiantar que é um filme sobre a impossibilidade de amar.
Entre 2007 e 2008 você lançou dois filmes. Já entre Árido movie e Baile perfumado, foram quase 10 anos. Por que tanto tempo?
Houve certa inexperiência de iniciante, umdeslumbre da minha parte. No Baile teve aquela repercussão toda, de curtir a viagem pelos festivais. Quando me dei conta, havia passado dois anos. Nesse tempo tinha escrito o roteiro de Cartola, com Paulo Caldas e Hilton Lacerda. Depois Paulo saiu, foi fazer o Rap do pequeno príncipe e ficamos eu e Hilton. Ao mesmo tempo, tive a ideia do Árido movie, o roteiro ficou pronto em 2001 e só consegui rodar em 2003. Em 2002 entrou O homem... E os projetos correram paralelamente.
Como começou sua carreira?
Estudei jornalismo com Paulo Caldas, Samuel Holanda, Adelina Pontual, Patrícia Alves. Paulo era o cineasta da turma e me convidou para ser assistente dele no Bandido da sétima luz, sobre Fernando Spencer. Foi a primeira vez em que trabalhei com cinema, em 1985. Cláudio Assis estudava economia, se aproximou da gente porque namorava uma das meninas. Nos juntamos e formamos o Avant-retrô, um nome completamente pernóstico, imagine, Vanguarda Retrô! Fizemos o primeiro roteiro, Biodegradável, que nunca virou filme. Logodepois Claudão ganhou um prêmio e foi fazer Henrique e convidou o Avant-retrô todo para trabalhar.
Ainda existe a "brodagem" dos primeiros tempos ou o clima está mais para disputa individual, para viabilizar o "seu"?
Rola de tudo, até confusão. Porque isso mexe com sentimentos. Não dá pra ser hipócrita e dizer que não existe disputa, apesar de saudável. Quem perde fica triste. Não cabe todo mundo. É paradoxal, pois ao mesmo tempo tem a brodagem de torcer pelo outro, fico superfeliz que Cláudio Barroso vai filmar este ano, Cláudio e Paulo também. Hilton está com Tatuagem, um projeto belíssimo. É a coroação de uma geração. E ainda tem a nova geração, que está botando pra quebrar.
A capacidade em usar limites técnicos e financeiros a seu favor marcou os primeiros filmes da retomada pernambucana. Você acredita que hoje a situação se inverteu - muitas câmeras nas mãos e poucas ideias nas cabeças?
As facilidades permitem o aparecimento de novos cineastas, com filmes maravilhosos ou ruins, em várias partes do Brasil. Isso é bom, as produções não estão mais concentradas no eixo Rio-São Paulo. Por outro lado, elas criam pessoas mais acomodadas, que nem sempre pensam num plano B. Antigamente, as pessoas pensavam duas vezes antes de ligar a câmera, ensaiavam mais, não podiam gastar muito negativo. Hoje fica pra resolver na montagem. Isso prejudica o foco, o olhar para a história.
Você é uma figura conhecida da boemia recifense. O que lhe interessa nesse contexto noturno?
Quando era mais novo, tinha uma relação mais cinematográfica. Hoje eu saio para relaxar mesmo. Sempre me interessei muito pelos personagens da noite. As pessoas que circulam pelas ruas, prostitutas, bêbados, travestis, ladrões, poetas, sempre tive um fascínio por esse mundo. Adoraria se pudesse sempre dormir muito tarde e acordar muito cedo. Esse é um dos grandes paradoxos da minha vida.
E o famoso beijo na boca de Lírio?
Já fui mais beijoqueiro (risos). Teve uma época que adorava beijar meus amigos. As pessoas comentavam. Uma vez até o Caetanocomentou. Sei que isso está fora de moda, mas passei a mania para outras pessoas, que eram reticentes no momento e hoje dão bastante beijo na boca...
Dizem que no Recife as pessoas já nascem artistas. E ultimamente há um boom de cineastas. Como você vê esse comportamento?
Não é de hoje que o Recife é uma cidade que respira cultura. Há a mistura de intelectualidade europeia com elementos da cultura popular. Isso explica um pouco essa necessidade do pernambucano de ser artista, sem necessariamente ter realizado algo. O audiovisual é a bola da vez porque está muito acessível, para o bem e para o mal. Ele está em voga, porque é uma maneira de falar e pensar o mundo de uma maneira rápida e direta. Assim como nos anos 90 muitas bandas foram inspiradas no manguebeat. O problema é que isso pode descambar para uma coisa de moda, de projeção. E não de passar o bastão.
É difícil ler uma crítica de um filme seu no jornal?
O problema está mais relacionado ao jornal do que aos críticos. Há pouco espaço para crítica,os cadernos estão ficando cada vez menores. Determinados filmes de entretenimento nem deveriam ser criticados, é um desperdício de espaço. Quanto à crítica, ela é fundamental, pois oxigena o cinema. Não acredito em pervesidade. O que muda é o gosto e a maneira de perceber. Não sou do tipo de ficar me lamuriando quando a crítica é negativa.
Árido movie gerou controvérsia por ser muito "aberto".
Ele é muito generoso, pois cada um sai com o seu final. É um filme pessoal, tem memórias, ideias, neuroses. As pessoas não precisam decifrar seus signos, mas podem senti-los. Ele é também uma homenagem à expressão Árido movie, cunhada pelo jornalista Amin Stepple, uma espécie de guru da minha geração. Sua visão instigante e provocativa foi fundamental para nossa formação. Adotamos o termo como contraponto ao mangue beat. Enquanto Glauber dizia "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", a gente disse "uma ideia na cabeça e um copo de uísque na mão".
Você despontou nacionalmente com Baile perfumado. De lá para cá, mudou a forma de entender o cinema?
Mudou menos a minha forma de ver cinema e mais a forma de ver a vida. Hoje, depois do sexo, drogas e rock'n'roll, que não foi uma conquista da minha geração, mas da que somos filhos e pudemos desfrutar, vejo um mundo completamente conservador, careta, bitolado, politicamente correto em tudo. Hoje o sexo é de uma caretice absurda, deixou de ser prazer para virar doença. As drogas, que eram usadas como algo sensorial, para abrir novos mundos, também viraram doença. E o rock também encaretou, tanto no visual quanto na maneira como se toca. Isso é muito triste, porque mina vários caminhos que poderíamos trilhar. Não sei se tudo aquilo em que acreditamos está morrendo, esse cinema provocante, instigador, reflexivo, difícil... Quando eu faço um filme, prefiro o desvio arriscado e desconhecido do que um caminho seguro e curto. Mantenho isso até hoje, com um olhar mais maduro. O frescor do Baile perfumado nunca vai ser o mesmo, mas mantenho meus "demônios". Continuo com a frase que encerra o Baile: "só os inquietos vão mudar o mundo". Significa o recado de uma geração de cineastas, que de alguma forma mudaram.
A política pública para o cinema está fortalecida em Pernambuco?
Sou de uma geração que mantinha relações de favor com o governo. Isso se quebrou. Espero que não volte mais. Hoje temos um canal de discussão aberto. Ainda não é o ideal, mas a gente chega lá. Esse espaço é de merecimento do cinema pernambucano, que colocou o estado na cinematografia mundial.
Você se envolve pessoalmente na batalha por recursos?
Com exceção do último, em todos os meus filmes sou produtor, diretor e roteirista.
Com eles dá para manter uma vida confortável ou você precisa de outras fontes?
Tenho graduação de jornalismo mas nunca exerci. Sempre vivi dos meus filmes. Tenho 44 anos e em raríssimas exceções estive empegado com carteira assinada. Desde 2001 vivi dos meus três últimos filmes, mas eles terminaram e eu decretei falência antes mesmo da crise mundial. Até agora, ou alguém me convida para fazer cinema ou videoclipe, ou faço projetos meus, que demoram certo tempo para se solidificar. Como só vou filmar em 2011, estou procurando emprego (risos). Quero trabalhar mais no Recife, pretendo ficar aqui por algum tempo.
A produção de filmes parece cada vez maior. O que falta para consolidar o cinema nacional?
O problema está na rede exibidora, que ainda está no sistema custo-benefício. Por isso, ela se concentra em grandes e poucos lançamentos, com risco zero para o exibidor. São filmes de grande bilheteria, para crianças e adultos que querem ser crianças. Deveria ser proibido dois filmes de 700 cópias cada entrar num país com 2 mil salas de exibição. Isso monopoliza o parque de exibição e causa um malefício absurdo. Mediocriza toda uma geração, criada com filmes banais, que não levam a pensar, que não incomodam. Cinema pra mim não é a maior diversão. Dos melhores filmes a que assisti, eu saí mal pra caramba, passei horas para digerir. Dizem que Glauber Rocha morreu para não ver esse processo. Se ainda estivessem no mercado, não sei se haveria espaço para ele e grandes gênios como Bergman, Antonioni e Fellini.
(Diario de Pernambuco, 09/08/2009)
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