domingo, 2 de agosto de 2009

As palavras do herdeiro



A história de Dominguinhos e Luiz Gonzaga começou em 1950. Época de ouro do baião, onde Gonzaga era o Rei e Dominguinhos era José Domingos de Morais, um menino de oito anos que tocava com os irmãos em Garanhuns. Quatro anos depois, foi Chicão, o pai biológico, quem fez a ponte entre o pequeno músico e o futuro pai artístico, que recebeu a família Morais dando de presente uma sanfona de 80 baixos. "Para nós era o céu", conta Dominguinhos, em entrevista ao Diario.

Não tardou e Dominguinhos vingou. Consagrado por público e crítica, ele não só deu continuidade, como evoluiu e ampliou o legado da sanfona nordestina. A seguir, ele fala sobre a vivência com o mestre e os rumos do fole prateado, instrumento que um dia brilhou nas mãos de Januário e Gonzagão e hoje segue firme com o talento e a simpatia de seu herdeiro.


Entrevista // Dominguinhos: "Gonzaga enxergava quando um homem tinha valor"

Como Dominguinhos descreve Luiz Gonzaga?
Como o mais importante artista criador que esteve na sustentação da música popular nordestina. Ele foi essa figura que, sem atentar muito para isso, deixou uma imensa obra para seguir e aprender para que ele continue sendo lembrado e sua herança jamais se perca.

Desde que você era garoto, trabalhou com Gonzaga com bastante proximidade. Como foi a convivência com o Rei do Baião?
Ele era aquele sertanejo puro, forte, gente boa. Era duro, às vezes, fazia a gente ficar um pouco assustado, mas imediatamente tudo voltava para o lugar, sem encrenca, pedia desculpas.

Ele também era conhecido como pessoa generosa, com muitos apadrinhados. Isso chegava a ser um problema?
Era meio de veneta. Fazia as coisas meio no rompante, nem sempre acertava. Dava uns foras porque deixava pessoas que não tinham nada a ver se aproximar. Depois caía em si e reclamava. Mas era um ser humano muito bondoso. Enxergava quando um homem tinha valor. Não tinha ciúme. Fazia o trabalho dele e quem quisesse se encostar, não tinha problema.

Gonzaga tinha vários afilhados, mas nomeou você como único herdeiro.
Eu tinha 16 anos quando ele me apresentou como herdeiro artístico. Fiquei surpreso, na época nem sabia o que era isso. Estava gravando com ele numa sessão da RCA, no Rio de Janeiro. Era minha primeira vez no estúdio e ele saiu-se com essa. Zito Borborema, eu e Miudinho formamos o primeiro Trio Nordestino nessa mesma sessão. A gente cismou de fazer um trio como Gonzaga gostava de tocar e passamos a ensaiar. Depois saímos pra viajar pelo Nordeste. Também foi a primeira vez que andei de avião!

Por algum tempo, você também foi o motorista de Gonzagão, não é?
Sim, em algumas viagens, nos anos 60. Às vezes, ele nem ia junto, viajava de avião. Ele queria me levar para o Nordeste com Anastácia, minha parceira. E o jeito que ele arranjou era que eu fosse útil também fazendo propaganda nos lugares onde chegava, com uma corneta em cima do carro. Eu fazia propaganda, abria os shows, depois ele se juntava e fazia o resto do show. Essas viagens foram extraordinárias, eu aprendi muito. Nem Gonzaguinha tirou proveito como eu.

Por falar nisso, você ter sido o preferido de Gonzaga causava ciúmes da parte de Gonzaguinha?
Olha, se tinha ciúmes ou não, eu não prestava muito atenção (risos). Não ligava pra isso. Quando ele se chegou realmente para viver com o pai, eu já estava no convívio com Gonzaga há bem mais tempo. E nós fizemos uma amizade muito proveitosa, fomos parceiros. Não tinha besteira com ele não.

Quando você encontrou Luiz Gonzaga pela primeira vez?
Conheci Luiz Gonzaga em Garanhuns, com oito anos de idade. Eu tocava na porta do Hotel Tavares Correia com meus dois irmãos. Morais tocava a sanfoninha de oito baixos, eu tocava pandeiro e Valdomiro, o melê. Eu nem sabia quem ele era e ele deu dinheiro a meu pai e seu endereço no Rio de Janeiro. Depois eu e meus irmãos fomos para Olinda, onde ficamos internos por quatro anos na Escola Prática e Comercial. Depois, andamos muito pelo interior tocando e pegando bigu em caminhão. Quando meu pai se desenganou e viu que não tinha jeito, não dava pra ficar mais, disse: "vamos para o Rio de Janeiro procurar Luiz Gonzaga". Meu irmão Morais já tinha ido fazia um ano com um amigo, Zé Paulo e pai tiveram a coragem de ir. Pegamos um caminhão e viajamos por onze dias. E deu certo. Foi aí que me juntei com Gonzaga.

Nos anos 60, Luiz Gonzaga amargou uma baixa na carreira, os discos não vendiam tão bem, o baião havia saído da moda. Como foi enfrentar esse momento?
Às vezes ele se desarvorava, se precipitava. Se aperreava, queria deixar o baião de lado, dizia que o povo não gostava mais dele. Mas isso era num dia. No outro, ele já estava com o pé na estrada. Continuou gravando e falando do Nordeste.

Nos anos 70 o acordeom foi reinserido na MPB e você fez parte disso. Como foi que se deu essa retomada?
Nos anos 50 havia o Mário Mascarenhas, grande professor que montava muita academias. Com o aparecimento da bossa nova, o acordeom começou a desaparecer, principalmente por causa do violão, da guitarra e o teclado, que saiu da igreja para tocar o iê-iê-iê. De repente, todo mundo começou a achar o acordeom pesado. Mas eu fiquei, assim como Chiquinha, também Chinoca, cearense do tempo da rádio Nacional que está no Rio até hoje, Edinho, tinha o Caçulinha, que tocava na chamada Regional de Pernambuco, ótimo músico, Orlando Silveira, Sivuca, que foi pra fora do país e voltou 18 anos depois. Até que o acordeom voltou a despontar devido à influência de Gilberto Gil e Gal Costa, que me colocaram pra tocar representando o Brasil na Midem (na França, em 1973) e depois gravando o disco Índia, no lugar do tecladista. A turma de estudantes universitários começou a redescobrir o instrumento e o acordeom voltou a entrar em evidência.

E hoje, para onde vai o forró sanfonado?
Estamos numa escalada de bons acordeonistas, que tocam muito bem. Nunca houve uma procura tão grande pelo instrumento como hoje em dia. Há muitos valores surgindo como Cezinha, Waldonys, Adelson de Viana. E os que tocam faz tempo, Chico Justino do Ceará, Gennaro que está por aí há muitos anos, mestre Camarão que já vem de muito antes, Arlindo dos Oito Baixos, Manoel Maurício, Geraldo Correia, que mora em Campina Grande, tem mais de 80 anos e é um dos maiores sanfoneiros de oito baixos do Brasil. Tem Luizinho Calixto, né? A sanfona tomou um rumo muito bom. Até os oito baixos estão sobrevivendo bem.

(Diario de Pernambuco, 02/08/2009)

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