sexta-feira, 6 de março de 2009

Watchmen atropelado pelo ritmo



Em 1986, Alan Moore e Dave Gibbons lançam Watchmen, série divisora de águas no reino dos quadrinhos norte-americanos, e em parte responsável pelo conceito de literatura gráfica. Desde então, virou fenômeno cult, e choveram boatos sobre como seria sua improvável versão para o cinema. Eis que, vinte e três anos depois, o filme chega às telas regado pela mesma desconfiança e ansiedade dos primeiros tempos. Tudo isso para dizer que Watchmen, produção dirigida por Zack Snyder e financiada pela Warner / Paramount, estreia hoje, nos cinemas do mundo. Mais uma vez - e isso é sintomático - Moore pediu para retirar seu nome dos créditos.

A pretensão, dizem os produtores Lawrence Gordon e Lloyd Levin (os mesmos de Hellboy), é oferecer um produto ao mesmo tempo acessível a quem nunca ouviu falar na HQ original, e renovar a linguagem dos filmes de super-heroi, que já virou gênero. Para tanto, contrataram a grife de Snyder, que rendeu milhões dois anos atrás com 300, outra obra originalmente concebida para a peculiar e escorregadia linguagem dos quadrinhos.

O que parece ter escapado da compreensão desses senhores e suas corporações é que não basta clonar morbidamente cada quadro, diálogo e textura de cor para que, por transferência divina, o mesmo efeito cultural se estabeleça. De forma que, apesar de todo o respeito, admiração e reverência com que foi feito, Watchmen, o filme, deixa um gosto amargo na boca. Primeiro, pelo ritmo "toque de caixa", necessário para espremer centenas de páginas em 2h40 de película. Segundo, pelo sentimento de que nós, o público, mais do que o filme, fôssemos o objeto manipulado e condicionado a dizer: "nossa, eles fizeram igualzinho ao original".

Se há pontos a favor, eles estão no fato de que a fidelidade canina dessa transposição quadro a quadro (quase tudo continua lá, exceto a HQ paralela Contos do cargueiro e o texto do livro fictício Por trás da máscara) é um pouco menos mórbida do que o still / fast-forward que fez de 300 um video-game em longa-metragem. Sequências do tipo "this is Sparta!" continuam sendo a assinatura de Snyder, o que não chegaa atrapalhar a densidade dos personagens, cenários e situações criadas por Moore/Gibbons.

A trilha sonora poderia ser elemento chave de uma suposta recriação, choveu no molhado ao usar Hendrix, Joplin e outros "medalhões" da música americana que há muito transbordam significado suficiente para serem invocadas mais uma vez.

Não deixa de ser irônico que nos objetos mais utilizados pela trama, os relógios, estejam um dos obstáculos que até hoje dificultam a relação entre sétima e nona arte. Pois no cinema, quem conduz o ritmo e o tempo é o diretor; nos quadrinhos, fica a critério da subjetividade do leitor. E esta, não deve ser atropelada, ainda que, como diz Mr. Zimmerman, os tempos realmente estejam mudando.



Pois a voz de Bob Dylan, mesmo tendo a melancolia como principal característica, sempre soa bem aos ouvidos. E é ela quem apresenta os créditos iniciais de Watchmen, uma das poucas sequências que podem ser chamadas de recriação no novo filme de Snyder. Nela é repassada a história recente dos EUA, paralela à evolução do grupo de vigilantes que dá nome ao filme/HQ.

Esse é o mote desta narrativa construída em camadas: como seria o mundo real habitado por justiceiros encapuzados? Para Alan Moore, o ufanista Capitão América seria o Comediante, cínico e sem caráter; Superman seria Dr. Manhattan, usado como arma para vencer a guerra do Vietnã; Batman seria o Coruja, que vive uma crise de meia-idade; o Homem de Ferro é Ozymandias, empresário de sucesso disposto a evitar conflitos mundiais (se bem que ele está mais para o Überman de Nietzsche do que para qualquer supertipo). Talvez o único personagem sem comparação seja Rorschach e seu moralismo sociopata disposto a limpar "a escória" das ruas.

Provavelmente a série em quadrinhos mais cultuada de todos os tempos (seus doze episódios, agora encadernados nunca saíram de catálogo), Watchmen pode ser melhor compreendida na versão original, que acaba de ganhar nova edição nacional pela Panini. Por sua vez, a Aleph presta um grande serviço aos leitores brasileiros ao traduzir Os bastidores de Watchmen (Watch the Watchmen), em que Dave Gibbons abre os arquivos pessoais e revela o processo de criação desta distopia que atualizou o universo dos super-herois aos dilemas contemporâneos.

publicado no Diario de Pernambuco (com alterações)

2 comentários:

gr disse...

um detalhe, André: você fez comparações entre os personagens de Alan Moore e medalhões como Superman, Capitão América e Homem de Ferro.
Mas é interessante lembrar que originalmente, a obra de Moore e Gibbons teria como protagonistas alguns heróis da Charlton Comics, editora menor que havia sido comprada pela DC no começo dos anos 80. No caso, cada personagem em Watchmen é derivado dessses heróis, alguns criados por Steve Ditko. Roschach, por exemplo, foi derivado do Questão. O Coruja, do Besouro Azul. Dr. Manhattan, do Capitão Àtomo.

Andre Dib disse...

Muito bem lembrado, GR. O super-grupo dos anos 40, os Minutemen também vêm desse contexto. A comparação que fiz tem a ver com a obsessão de Moore em parodiar super-seres estabelecidos e que não passam das duas dimensões.