domingo, 17 de maio de 2009

O sobrevivente



Em 31 de dezembro de 1982, após negociar sua soltura com os médicos, o compositor Arnaldo Baptista se jogou da janela do hospício em que foi internado. Tudo foi descrito assim pelo ex-Mutante: "Queria me ver livre, e pensei: vou comemorar o aniversário de quem me colocou aqui pela primeira vez. Me joguei e, parece um milagre, acordei na cama com minha menina".

Esse é um dos vários depoimentos reveladores presentes no documentário Lóki, primeiro produto audiovisual que conta em detalhes a trajetória deste artista indispensável para a gênese da tropicália. Ou mais, como afirma o maestro Rogério Duprat: "Ele é responsável por quase tudo o que aconteceu na música brasileira de 1967 pra cá". Dirigido por Paulo Henrique Fontenelle e produzido pelo Canal Brasil, o longa-metragem deve estrear mês que vem no Recife e em outras capitais.

O grave episódio (Acidente? Tentativa de suicídio?), passível daqueles que se arriscam a mergulhar fundo na vida, não é o único a despertar interesse. Ao longo de seus 60 anos de existência, Arnaldo amou, criou, passou do céu ao inferno e sobreviveu para contar história. Informações sobre o artista já haviam sido reveladas no livro A divina comédia dos Mutantes. Só que Lóki supera bastante a obra escrita nos anos 90 por Carlos Calado pois se estende da infância ao recente revival do grupo (que tocou no Abril pro Rock em 2007).

O filme de Fontenelle traz informações novas, nas vozes da atual esposa Lucinha Barbosa, do irmão Sérgio, de antigos parceiros como Liminha e Dinho, de especialistas no assunto (Nelson Motta e Tárik de Souza), admiradores célebres (Lobão e Tom Zé, no Brasil; Devendra Banhart e Sean Lennon lá fora) e do próprio Arnaldo, que enquanto fala pinta uma tela que, ao final das duas horas de projeção, representará sua vida.


O ARTISTA FALA DAS ETAPAS SUPERADAS E DO QUE O IMPULSIONA: "DESCOBRIMENTO. EXPLORAÇÃO"

Canal Brasil - Há 10 anos no mercado televisivo, essa é a primeira produção do Canal Brasil para o cinema. "Contamos com uma facilidades, como acesso a equipamento e pessoal da emissora", disse o produtor André Saddy. A produção custou em torno de R$200 mil, boa parte destinada ao pagamento de direitos autorais.

"Quisemos dar vazão à uma pergunta inquietante: qual o mistério de Arnaldo?", diz o diretor geral da emissora, Paulo Mendonça. Ele explica que o projeto surgiu de forma embrionária em 2005, durante a gravação de um programa dedicado a músicos sem foco na mídia, chamado Luz câmera canção. O depoimento do compositor foi tão forte que os produtores não sabiam o que fazer. "Não tinha como reduzir aquilo a meia hora de programa", conta Saddy.


SADDY, MENDONÇA, ARNALDO E FONTENELLE

O nome do documentário é o título do primeiro disco solo de Arnaldo, composto em 1974 após o "chega pra lá" de Rita Lee que, durante o processo de separação, havia internado Arnaldo pela primeira vez, "não totalmente sem motivo, pois já tinha feito tanta coisa", revela o compositor. A essa altura, a tela traz pintado no centro um Arnaldo bebê, que repousa sobre uma mulher de cabelos louros e, acima de tudo as palavras: "sinto muito". Apesar de desempenhar papel central na vida de Arnaldo, Rita não topou falar ao documentário, mas liberou o uso de sua imagem.

Tendo vencido o prêmio de júri popular no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro e na 32º Mostra de Cinema de São Paulo, Lóki tem gerado comoção por onde passa. Assim, corrige injustiça histórica ao mesmo tempo em que apresenta a novas gerações um artista que, como nenhum outro na MPB, oscila entre loucura e lucidez, e fez da vida um radical manifesto de liberdade.

* publicado no Diario de Pernambuco.

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