domingo, 5 de julho de 2009

Um clássico no banco do réus



A polêmica em torno de livros adotados como material paradidático nas escolas públicas tem se estendido para publicações em quadrinhos. Há dois meses, uma onda de acusações inflamadas está colocando em dúvida a validade de certas obras no ambiente escolar. As mais recentes dizem respeito à títulos do norte-americano Will Eisner, recomendadas para alunos do ensino médio pelo Ministério da Educação, através do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). No Rio Grande do Sul, Um contrato com Deus, O sonhador e O nome do jogo foram recolhidos das bibliotecas do ensino público estadual, sob acusações de conterem cenas de sexo e violência. Em São Paulo foram feitas denúncias semelhantes, sem que as obras fossem retiradas das prateleiras.

Na edição da última quarta, o jornal popular paulistano Agora trouxe como uma das chamadas de capa "MEC distribui livro com pedofilia para alunos de 11 anos". "Fiquei horrorizada", diz uma professora do ensino fundamental, sobre oconteúdo de um dos livros. Na mesma matéria, o MEC afirma que manterá os títulos no acervo. Maria do Pilar, secretária de educação básica do ministério, não só defende o uso como material complementar de leitura das obras questionadas, como afirma que ele deve ser supervisionado por bibliotecários, de forma a evitar o acesso de alunos fora da faixa etária especificada pelo programa (há diferentes listas para o ensino médio e fundamental).


Quem diria, Will Eisner sob acusações de pedofilia, sexo e violência

Lançado em 1978, Um contrato com Deus é uma obra consagrada e pioneira por estabelecer o conceito de graphic novel (narrativa gráfica) e apresentar relações humanas com a profundidade que merecem. Assim como os outros livros em questão, Eisner parte da experiência de ter crescido num bairro pobre e violento de Nova York. Os desenhos, que geraram controvérsia são basicamente dois: uma menina de dez anos levanta a saia para um adulto e cobra cinco centavos por isso; e um músico bêbado e desmpregado bate na esposa e joga o bebê no sofá. Logo após as situações se invertem: o homem se torna vítima da menina, que rouba seu dinheiro; e, arrependido, o casal se reconcilia no dia seguinte.



A reação de editores e artistas de quadrinhos foi imediata, e conta com uma carta aberta às autoridades de educação, assinada por cinco pesquisadores universitários, entre eles o professor Waldomiro Vergueiro, titular da ECA-USP. "Os argumentos em contrário tem se mostrado infundados, frutos de receio e não de fatos", diz o documento.

Rogério de Campos, diretor da Conrad, diz que este é um momento terrível para a liberdade de expressão no Brasil. "Importamos dos EUA a praga do politicamente correto, a indústria dos processos por supostos danos morais ou usos indevidos de imagem, e, por fim, a paranóia com crianças". Ele isenta gestores da educação pela "censura moral" em curso. "Estes estão sendo perseguidos por realizar uma de suas missões que é a de apresentar aos estudantes a produção cultural contemporânea. Os obscurantistas têm horror à cultura viva".

Leandro Luigi Del Manto, responsável pelos quadrinhos na Devir - editora que publica Eisner no país - crê que as obras estão servindo de "bode expiatório". "No Brasil, os quadrinhos sempre foram vistos com uma forma de arte menor, literatura barata ou 'higiene mental'. Justamente agora, que os quadrinhos conquistaram espaço nas bibliotecas públicas e as pessoas começam a olhar com um pouco mais de seriedade para essa forma de arte, algumas pessoas insistem em puxar o freio de mão e engatar a marcha à ré".

Em maio, outro caso envolvendo o uso de quadrinhos nas escolas ganhou atenção nacional, desta vez sobre o uso supostamente indevido de Dez na área, um na banheira e ninguém no gol (Via Lettera) nas escolas estaduais de São Paulo. Principal alvo político da polêmica repercutida na imprensa, José Serra classificou o livro como "um horror" de "muito mau gosto".

Dez na área... reúne artistas de reconhecimento internacional como Caco Galhardo e os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá. Ele foi escolhido pela Secretaria de Educação de São Paulo a partir de um pacote de 80 títulos oferecidos pela editora. Após a polêmica, o livro foi novamente avaliado e nunca chegou às bibliotecas.

Ao contrário dos próprios autores, Roberto Gobatto, gerente de marketing da editora diz que não vê problemas no uso do livro nas escolas. Ele vê na situação uma caça às bruxas motivada por necessidades políticas. "Palavrões e comportamentos questionáveis podem e devem ser tratados em sala de aula", defende o editor. "Não foi dada a chance do livro ser compreendido como linguagem alternativa ou mesmo trabalhado como uma crônica sobre futebol, um universo vivido por qualquer menino que joga bola".

Coordenador da coletânea Domínio Público - literatura em quadrinhos, outro título selecionado pelo edital 2009 do PNBE, o pernambucano João Lin acredita que, se realmente há um equívoco, a solução está no processo de escolha do material. "Má adequação não é privilégio dos quadrinhos. Ela poderia acontecer com qualquer obra, como uma pintura. Por isso, temos que estar atentos. Acho que é papel do MEC não só recomendar, mas fiscalizar como os livros estão sendo utilizados".

Editores temem que prática se multiplique

De tempos em tempos, as histórias em quadrinhos vivem ciclos de perseguição. Nos anos 50, a paranóia anticomunista nos Estados Unidos culminou com o fechamento de várias editoras de HQs e a criação de um selo de aprovação por um conselho de ética. "Os quadrinhos foram obrigados por lei a serem inocentes, puros e bestas. Enquanto outras linguagens artísticas, como a literatura, o cinema e o teatro puderam continuar evoluindo, eles foram censurados de tal maneira que acabaram desistindo de suas ambições. Quando os anos 50 terminaram, quadrinhos eram bobagens que somente satisfaziam adolescentes masculinos e ingênuos", descreve Campos, da editora Conrad.

Mais otimista, Leandro Del Manto, da Devir, acredita que a polêmica será substituída assim que a mídia eleja a nova "pauta" da vez. "Tudo vai acabar perdendo a graça e, assim espero, alguém de bom senso colocará um ponto final".

Em 2006, o PNBE abriu espaço para publicações em quadrinhos. Desde então, o governo passou a ser um dos melhores clientes das editoras.Para elas, ter um livro selecionado pelo edital pode ser a salvação da lavoura. "É como fazer um best seller. E a vantagem não é só nossa. Com o aumento da tiragem, o preço diminui para o consumidor das livrarias", diz Gobatto, da Via Lettera.

"Não há nada no mercado de livrarias que atinja vendas comparáveis a essas", diz Campos. João Lin ressalta importância do edital como formador de público leitor de quadrinhos. "Os quadrinhos não existiam nas escolas. Foi um avanço compreender que como qualquer outra arte, eles são importantes para a formação dos jovens, tanto quanto outro gênero artístico".

Ao menos por enquanto, a Conrad não tem títulos listados no "index". Mesmo assim, Campos toma as dores das editoras que tiveram livros recolhidos. "Temo pelo que possamos regredir", coloca. "O que está em jogo não é o destino dos meus concorrentes, mas da indústria dos quadrinhos e da liberdade de expressão no Brasil. Em geral, os obscurantistas não são muito chegados à leitura, mas conseguem entender uma história em quadrinhos porque esta tem força decomunicação imediata. Se eles continuarem sua cruzada e se esforçarem para começar a ler livros de literatura, não vai sobrar muita coisa. Talvez cheguem à conclusão que o melhor seja proibir bibliotecas".

* publicado no Diario de Pernambuco, o texto acima faz parte da reportagem Não queime antes de ler, escrita em parceria com Thiago Corrêa

Um comentário:

Anônimo disse...

o fenômeno aconteceu aqui no paraná tambem...rs..