quarta-feira, 15 de julho de 2009

O "não-filme" de Eduardo Coutinho



Paulínia (SP) - Um "filme-ensaio", quase um "não-filme", ofuscou as demais atrações da noite de segunda-feira no Festival Paulínia de Cinema. "Não sei o que fiz", diz o próprio diretor, Eduardo Coutinho. Aos 77 anos, um dos mais importantes documentaristas em atividade se arrisca em fazer algo novo e sem dúvida, árido para a maioria do público consumidor de cinema. Ao mesmo tempo, Moscou mantém coerência com o que tem desenvolvido nos últimos anos, quando iniciou parceria com a produtora Videofilmes, de João Moreira Salles.

Foi de Salles, aliás, a ideia de convidar o Galpão, grupo de teatro mineiro, para servir de laboratório para um experimento um tanto incomum: ensaiar durante 18 dias, exclusivamente para o documentário, a peça As três irmãs, de Anton Tchekhov, a quem agradeceu da seguinte forma: "ele não tem culpa do que eu fiz", disse Coutinho, ao apresentar o filme ao público do Theatro Municipal, em demonstração física de incômodo e tensão.

O que interessa a Coutinho, como sabem todos aqueles que acompanham sua obra, é o processo. Para ele, não importa o que entra em cena, tudo é apresentação e representação, verdade e mentira, imaginário e real. Moscou mantém tais premissas, só que de maneira um tanto sofrida. Tanto que, após 70 horas de gravações e um primeiro corte de 4h40 com o texto do dramaturgo russo na íntegra, o cineasta quase desistiu do projeto. "Não tem filme", teria dito Coutinho a Salles, que ofereceu a saída com um corte final de 80 minutos, completamente fragmentado e sem a mínima intenção de fazer sentido. A solução coloca em primeiro plano um elemento de criação menos recorrente a seus filmes: a montagem. "Saí do inferno", disse Coutinho, em intrigante coletiva de imprensa na manhã de ontem. "Quero escapar do purgatório também".

Segundo o próprio, as perspectivas não são as melhores. "É um filme difícil. Quase ninguém sabe quem é Tchekcov no Brasil. Até uma analfabeta vê e se interessa por Jogo de cena. Já Moscou é limitante pra quem não temnoção de teatro. De qualquer forma, o público que assiste documentário é louco. Quem vai a teatro também é, então quero juntar esse público".

Diferente de Edifício Master e O fim e o princípio, em que procura estabelecer relação íntima com o entrevistado, Coutinho dirige o olhar sobre um grupo de atores regidos por Enrique Diaz, um dos diretores do Galpão. Para ele, este foi um processo penoso, pois teve de abrir mão do controle geralmente atribuído ao condutor de um filme. "O crédito do filme devia ser do Henrique", chegou a dizer o realizador. "Eu me perguntava o que estava fazendo ali. Minha única preocupação era acreditar no que os atores dizem, observar o diretor que observa o grupo. Não sabia o que seria o filme, ou o que acabou se tornando".


Os diretores Enrique Diaz e Evaldo Coutinho apresentam as regras do jogo

Lampejos de uma peça que nunca será vista integralmente, as imagens de Moscou foram feitas sem pensar em iluminação ou cenário. Entre leituras dramáticas e encenações, tudo entra em cena: camarins, caixas de papelão, extintores de incêndio, conversas paralelas, umespaço cênico esquemático e com pouquíssima luz. Há inclusive um momento de completa escuridão, rompido por fósforos riscados pelos atores.

"Tudo era válido, e ao mesmo tempo tudo era palco", explica Coutinho, que aparece em cena uma única vez, em reunião que estabelece as regras do jogo: uma dinâmica de construção de personagens que utiliza memórias reais e inventadas, do passado e também do futuro. "Queria trabalhar com atores, que são pagos para representar a paixão dos outros. Toda memória é mentira e verdade. Da mesma forma, não dá para separar o personagem da pessoa que o representa".

No texto original, a cidade de Moscou é compartilhada pelos personagens como destino redentor e de distinção social. No ensaio / filme, nada mais é do que uma abstração, por vezes materializada em fotografias de infância ou em desenhos de giz nas paredes. "São elementos misturados com o real, para fazer chegar a Tchekhov da única maneira possível no tempo disponível. Moscou é um ponto de partida do imaginário. As pessoassonham com um Moscou da infância, ou que vai chegar. Assim, todo mundo pode participar", disse o diretor.

Mais adiante, Coutinho confessa que esse é um filme sobre si mesmo, definição quase que redentora para os críticos mais inquietos. "Não me interesso por filmes temáticos, sobre hospícios ou presídios. Cada vez mais quero saber o que acontece na frente de uma câmera. O que tem de verdade ou mentira nisso, não tem a menor importância".

*publicado no Diario de Pernambuco

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