domingo, 12 de julho de 2009
Entrevista // Edgard Navarro : "Esse filme é um 'ebó' que me desonera de fazer outros"
A primeira versão do argumento é de 1978. Como ele surgiu?
Foi num desses delírios de juventude, da mistura de várias coisas. Sexo, drogas e rock'n'roll. A história, sobre um fantasma que toma conta de uma botija de ouro enterrada, é recorrente na mitologia brasileira. E me perturbou durante anos.
É um filme ligado ao plano mitológico?
Eu trabalho com o raso e o profundo, com signos que remetem à realidade do dia a dia. Há personagens muito fervorosos numa crença, completamente preocupadas e comprometidas com a profundidade do ser. E outros que não acreditam em nada, são rasos na dor e na vida filosófica. Quero falar sobre a avareza, sobre apego e desapego. Quero falar sobre a busca do tesouro interior, enterrado no passado.
Que realidade vivem os moradores dessa cidade de pedra?
É uma realidade dura, que de certa forma é uma síntese do que é a sociedade. Há uma convivência difícil com os tipos mais comezinhos, prosaicos, que fazem todo tipo de fofoca. E a dor, que perpassa tudo. Há os homens que não conseguem dormir, porque estão infelizes e são trazidos à luz para conviver com o deboche, a chalaça, o descaso das pessoas ditas comuns. Elas deitam e rolam com a dor dos outros. O corno é o outro, o veado é o outro, a puta é a outra, o louco é o outro. É o mundo dos humanos que estão na ralé, com as cores do Brasil e da Bahia.
Um dos personagens foi raptado e torturado pela ditadura militar durante os jogos da Copa de 1970. Você chegou passou por algo parecido nessa época?
O máximo que eu sofri foi o ardor nos olhos pela fumaça de uma bomba de gás lacrimogêneo. Não tive confronto direto com a polícia porque não optei pelo enfrentamento. Optei pelo desbunde da arte, na descoberta das drogas. Tudo isso foi colocado no meu filme anterior, Eu me lembro, que conta minha participação naquele momento. Eu não tive coragem nem convicção suficiente para pegar em armas. Minha guerra era de outra natureza, travada dentro de mim mesmo.
Prestes a completar 60 anos, o que te impulsiona a realizar um filme?
Para mim,fazer cinema é algo mais do que profissão. Virou obsessão. Além de ser algo artístico, é algo quase religioso, uma necessidade visceral de sobrevivência. É por isso que fiz isso até agora. Enquanto se gastam mundos e fundos para fazer filmes de R$ 15 milhões, desprovidos de alma fértil ou de uma consequência maior para o país miserável que vivemos. Para repetir o que já existe na TV. O fato de ter muito escrúpulo me levou para uma senda onde sei que não há retorno. Esse filme me desobriga de ficar nessa loucura, nessa neurose. A partir de agora, talvez não faça um cinema tão sacrificado.
É um ciclo que está se encerrando?
Um ciclo de obrigação. É como no candomblé, onde tenho que arriar determinada oferenda a um orixá. A minha vida inteira, com 30 anos de cinema, tenho a clara consciência de que estou fazendo um grande ebó. É como se eu estivesse disparando vários ebós, cada filme era um. E esse ebó me desonera de continuar fazendo outros. Acabou a grande obrigação. Agora vou fazer cinema por dilentantismo.
Que obrigação era esta?
Uma obrigação da minha neurose, companheiro. Da minha alma, da minha religião, de uma carência, de uma agonia. Que não tem nome. Artur Bispo do Rosário, que tem uma grande obra e era esquizofrênico, falou : 'vocês dizem que é arte, mas não é arte. É a minha salvação na terra'. É isso que vai me curando. Depois desse filme, posso respirar e fazer qualquer coisa. Fui anistiado do meu karma. Talvez continue fazendo cinema como nos tempos do Super 8, e fazer minhas besteiras imperfeitas com descompromisso. Ou, quem sabe, vá fazer um jardim. Será uma felicidade maior do que esse cinema atrelado a tantas preocupações, como ganhar o Oscar.
*publicado no Diario de Pernambuco
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