domingo, 31 de outubro de 2010

Nem tudo é mentira



Ele já foi policial, olheiro da seleção brasileira, DJ, líder de rebelião no Bangu, repórter da MTV, membro do narcotráfico no Paraguai, guitarrista do Engenheiros do Hawaii, piloto de avião e megaempresário. Agora, a incrível história de Marcelo Nascimento chega aos cinemas. No papel principal está Wagner Moura, como o rapaz que adentrou o high society recifense fingindo ser um dos donos da Gol. Nos quatro dias em que durou o golpe, ele foi o centro das atenções e chegou a aparecer duas ao vivo em rede nacional, no Programa Amaury Jr.

Produzido pela O2 de Fernando Meirelles e distribuído pela Universal Pictures, Vips (Brasil, 2010) tem direção de Toniko Melo, foi o grande vencedor do último Festival do Rio e está na programação da Mostra Internacional de São Paulo, onde foi exibido pela primeira vez na quarta-feira, com a presença de produtores e elenco.

A fotografia é do pernambucano Mauro Pinheiro Jr. (Linha de passe, Cinema, aspirinas e urubus), que utilizou referências da cidade para filmar cenas do carnaval de Olinda em Santana do Parnaíba, Região Metropolitana de São Paulo. No Recife, há cenas do Galo da Madrugada e no resort Nannai, onde Marcelo recebeu tratamento especial por fingir ser Henrique Constantino, um dos sócios da Gol.

No filme, o personagem é um polimorfo inteligente e imaturo, em busca de aceitação social e familiar. Ele quer se tornar piloto como o pai, só que alcança seu objetivo trabalhando para o narcotráfico, sob o apelido de Carrera. De volta para casa, arma o golpe do Recife para agradar a mãe, que sonha com o filho famoso. No Recife, ele entra para o clube dos ricos e famosos no papel de patrocinador do Recifolia e, via televisão, transmite a farsa em rede nacional. Atrás das grades sob o nome de Juliano, ele foi mediador de uma rebelião em Bangu, onde fingiu ser do PCC e pleiteou direitos dos presidiários, novamente para todo o Brasil.

Na pele de Wagner Moura, Marcelo ganha ainda mais poder de convencimento pois não conta somente com a astúcia, mas com o carisma de um dos atores mais valorizados do país. É certo que Moura faz o Marcelo Nascimento de forma menos dedicada do que o Capitão de mesmo sobrenome. As comparações ficariam por aqui não fosse o cruzamento de realidades de Tropa de Elite 2 e Vips, que passam pelo mesmo levante em Bangu. É estranho, mas o mesmo ator está nos dois lados da mesma situação, mostrada em filmes diferentes.

"Essa parte foi eu quem escrevi", diz Toniko Melo, autor do roteiro ao lado de Bráulio Mantovani. "Foi minha forma de brincar com o tema". Em conversa depois da sessão, o diretor disse que ao Marcelo da vida real fez apenas uma pergunta: por que, depois de enganar as pessoas do Recife, ele voltou para o Rio? "Isso não foi coisa de alguém genial. Ele demorou um mês para me responder e disse que fez isso porque não conseguiu sair do personagem. Para mim, isso é característica de um psicopata. Por outro lado, quem já não passou do limite e esqueceu de pôr o pé no freio moral?", questiona.

É inevitável comparar Vips com Prenda-me se for capaz (Catch me if you can, EUA, 2002), de Steven Spielberg. Toniko rebate e diz que entre os personagens há uma clara diferença. "Leonardo Di Caprio interpreta um falsário, enquanto o meu personagem é farsante". Ambos, no entanto, gostam de se dar bem com as mulheres.

"Marcelo ficou com várias garotas que pensavem que ele era rico, mas uma certa empresária recifense sabia que era um golpe e ainda assim ficou com ele", garante Toniko.

Para compor os vários personagens criados por Marcelo, Wagner Moura disse que utilizou o método de Stanislaviski. "Construí uma psicologia para cada identidade assumida por ele". Longe do fascínio pelo crime, Moura não investiu no papel do bandido mas daquele que está à procura de si. "Ele não é herói de nada, é um bandido perigoso. Como não me identifico com nada disso, fiz a opção estética que me pareceu mais interessante".

O elenco de Vips ainda conta Milhem Cortaz, Luciano Cazarré e Arieta Corrêa. Na trilha sonora estão Lúcio Maia, Pupillo e Edgard Scandurra. Antes de estrear, em março de 2011, o filme deve ter uma première no Recife. Amigo do diretor há 20 anos, Fernando Meirelles disse ao Diario que acredita no futuro comercial do longa. "Ele tem apelo, é inteligente e interessante e por isso pode funcionar bem com o público e se tornar um grande filme no ano que vem".



O Marcelo da vida real - Vips é uma adaptação do livro de Mariana Caltabiano (Jaboticaba, 2005), atualmente na 2ª edição e 17ª reimpressão. Quando leu uma reportagem sobre Marcelo, ela viu na história um bom filme e procurou por ele. Para entrevistar Marcelo, a autora o visitou diversas vezes quando estava detido numa prisão em Curitiba. As entrevistas renderam o documentário Histórias reais de um mentiroso, também lançado durante a Mostra, com depoimentos da família, polícia e vítimas de Marcelo, como o apresentador Amaury Jr e o ator Ricardo Macchi. O filme estreia pouco depois da estreia da versão ficcional, com distribuição pela Imovision.

Mariana tem uma visão generosa do personagem, mostrado como alguém amigo, querido pela mãe e de raciocínio afiado. "Ele é um cara muito inteligente e ansioso, não consegue esperar o tempo certo para atingir os objetivos. Suas vítimas sempre foram quem queria se dar bem por puro interesse, como no Recifolia. Não teria feito um filme sobre ele se fosse um bandido comum, que rouba de velhinhas. Ele é um estelionatário que tem certa ética".

"As pessoas dizem que foi a gafe da minha vida", diz Amaury Jr., no documentário. "Mas não foi bem assim. Ele não só me iludiu, como iludiu o Recife inteiro. Todos foram enganados pelo gênio que é esse rapaz". No livro, Amaury corrobora com Mariana na visão de que Marcelo não é um bandido comum. "Não o vi pedir dinheiro pra ninguém. Só querendo ser o centro das atenções. Dá impressão de que ele tem carências de se sentir uma pessoa importante".

Assim como a família dos donos da Gol, ele também é de Maringá, interior do Paraná. Após a morte do pai, se fez passar pelo filho do dono de empresa de transporte e assim viajou por várias cidades assumindo outras identidades. Bom contador de histórias que é, Marcelo acaba de terminar seu primeiro romance, que também será publicado pela Jaboticaba.

Outro fato impressionante de sua carreira foi a análise que fez da tragédia aérea que matou 199 pessoas no aeroporto de Congonhas, entre elas, dois irmãos de Mariana Caltabiano.A pedido dela, Marcelo escreveu uma carta de seis páginas onde diz que havia uma mulher além dos pilotos na cabine de comando, que houve falha humana e técnica e que a TAM estaria assumindo a responsabilidade sozinha para poupar a imagem da fabricante Airbus. Meses depois, a imprensa chegaria à mesma conclusão.

Para Mariana, o fato de Marcelo ter conseguido certa fama seria suficiente para ele parar com os golpes. Mas há quatro anos ele voltou a ser preso em Tocantins, de onde tentou sequestrar um avião. "Várias vezes me dei bem porque mexo com a ambição das pessoas", disse Marcelo, que por estar na cadeia não pode assistir às versões de sua história no cinema.

(Diario de Pernambuco, 31/10/2010)

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