sexta-feira, 15 de julho de 2011

A política dos corpos nus



Paulínia (SP) – A produção pernambucana Febre do rato encerrou a mostra competitiva do Festival Paulínia de Cinema de maneira inesquecível. Antes mesmo de o filme começar, durante os agradecimentos, Cláudio Assis deu o tom de alegre ousadia. Beijou toda a equipe na boca, inclusive os apresentadores Rubens Ewald Filho e Marina Person. Pediu ao público que estava no fundo do teatro que viesse para as cadeiras da frente, reservada ao elenco. “Meu elenco senta no chão. E pode chamar quem ficou lá fora. Tem lugar pra todo mundo. A gente faz cinema assim, com emoção, vontade”, disse. Falou palavrões. E ainda convidou a todos para dançar.

Certamente, em seus quatro anos, o festival nunca havia mostrado um filme assim. Exibido anteontem, o longa de Cláudio Assis elevou à enésima potência o nível da competição, até então dividida entre o existencialismo colorido de O palhaço e a visão impiedosa da classe média que degringola em Trabalhar cansa. Assim, além de apoiar a realização de novas produções, Paulínia se firma também como lançadora de filmes nacionais, de olho na vitrine (são 150 jornalistas) e nos prêmios (total de R$ 800 mil – R$ 250 mil para o melhor longa).

Selton Mello fez um belo trabalho como roteirista, diretor, co-montador e ator de O palhaço. Deve ficar com boa parte dos prêmios. Mas será uma injustiça se o júri não reconhecer o desempenho de Irandhir Santos como o poeta Zizo. Com emoções à flor da pele e uma fluidez verborrágica para o texto de Hilton Lacerda, Irandhir está entregue ao papel de tal forma que, sem ele, Febre do rato não teria como existir.

Colaborador dos filmes de Cláudio desde o curta Texas Hotel, o diretor de fotografia Walter Carvalho pintou um Recife monocromático e em cinemascope. Em parte do tempo, a câmera está posicionada debaixo de pontes ou correndo pelo leito do Capibaribe. O poeta Zizo é um personagem autônomo, mas é possível enxergar nele poetas marginais do Recife, como o próprio Zizo, Erickson Luna, França e Miró. “É a nossa forma de homenagear essa geração”, disse o roteirista Hilton Lacerda, também autor das poesias.

“Tudo será mostrado com generosidade”, garantiu o diretor, durante as filmagens, em setembro do ano passado. E cumpriu. Não faltam cenas de sexo. Nunca pornográficas, mas eróticas ou bizarras (como quando Zizo se esfrega numa máquina de Xerox). Há um quadrilátero amoroso e a relação romântica entre Pazinho (Matheus Nachtergaele) e a travesti Vanessa (Tânia Moreno). Num tonel, Zizo transa com duas mulheres mais velhas (Conceição Camarotti e Maria Gladys). “O que ele sente por elas é amor, amor que se atreve para reinventar. E o sexo passa por isso”, conta Irandhir.

“O que ele sente por elas é amor, amor que se atreve para reinventar. E o sexo passa por isso”, conta Irandhir. A cena em que Zizo segura Eneida (Nanda Costa) com uma das mãos, para que ela se incline na borda de um barco, enquanto molha a outra mão com a urina da garota, é uma das mais lindas declarações de amor do cinema. Não o amor burguês, paralisante, mas aquele forjado na liberdade, capaz de deflagrar energia criativa. É a política dos corpos nus, cuja genitália é mostrada de forma coloquial, tão comum que voltamos a prestar atenção no filme.

Zizo olha para o Recife como uma utopia possível. Ele edita um jornal impresso no fundo do seu quintal, que divulga microfone em punho, em carro de som. Indignado com o conformismo dos normais, nas palavras do poeta, com o “festival do eu acanhado”, ele circula por favelas e pelo centro da cidade, conclamando a revolta. Evoca Chico Science: “cadê tua ciência pra esclarecer?”. É a cidade reinventada, transcendente.

Com a mesma gana, na coletiva para a imprensa, Cláudio Assis fez o mesmo e assumiu o controle da mesa. Palavras de ordem não faltaram. “O cinema brasileiro é careta”. Muito menos xingamentos, como os dirigidos para os gestores da Prefeitura do Recife. “A gestão do PT é nojenta. Gastamos R$ 1,5 milhão na cidade e a prefeitura não deu um centavo em troca. Pelo contrário, pagamos à CTTU para fechar as ruas”.

O protesto é compreensível. Já disse Glauber Rocha: “A arte é tão difícil quanto o amor”. E o amor não admite meio termo. Para chegar a ele, é preciso coragem, desprendimento, assumir riscos, não ter medo de errar. E isso, Febre do rato tem de sobra.

(Diario de Pernambuco, 15/07/2011)

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