sábado, 30 de julho de 2011

Fantasma da censura assombra o país



Nos últimos dias, um filme de horror produzido na Sérvia reascendeu o debate sobre a volta da censura no Brasil. Com cenas de violência explícita, feitas para causar repulsa, A serbian film - terror sem limites, do estreante Srdjan Spasojevic, já estava proibido de ser exibido no estado do Rio de Janeiro desde a semana passada. A notícia mais recente é que o Ministério da Justiça suspendeu anteontem os trâmites para a emissão da classificação indicativa, o que inviabiliza sua exibição pública em território nacional. Trata-se de um caso sem precedentes desde a promugação da Constituição de 1988, que garante a liberdade de expressão para obras artísticas.

Em manifestações de repúdio, a comunidade cinematográfica tem se posicionado contra os acontecimentos. O que pode assustar mais do que as cenas do filme é que situações como esta possam se repetir no futuro. Antes mesmo do veto oficial, quando o filme foi retirado da programação da RioFan, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema lançou nota em que alerta para que sejam preservados a “liberdade de expressão cinematográfica e o direito de os espectadores assistirem aos filmes que lhes convêm”. “estamos defendendo um princípio: o de um filme poder ser assistido e avaliado pelo espectador com liberdade”.

O Congresso Brasileiro de Cinema colocou no ar uma petição pública. “O abaixo-assinado vale também para quem não quer ver ou não gostou de A serbian film. Amanhã pode acontecer com seu filme favorito”, alerta a distribuidora do longa no Brasil, a Petrini Filmes, via Twitter. “Com o veto, teremos prejuízo de mais de US$ 10 mil, fora despesas judiciais, material promocional, encoding digital e taxas da Ancine”, diz Rafaelle Petrini. Se por um lado, o filme deixa de circular em meia dúzias de salas no país, a polêmica em torno da obra gerou publicidade suficiente para aumentar significantemente o número de downloads ilegais.

Vetado na Noruega e exibido na Inglaterra com dezenas de cortes, A serbian film teve duas sessões públicas no Brasil - uma no Fantaspoa (Porto Alegre) e outra no Festival Lume, em São Luiz do Maranhão (festivais podem exibir filmes antes que eles recebam a classificação indicativa). Em seu momento mais polêmico, uma sequência insinua - mas não mostra - um homem que faz sexo oral com um recém-nascido. Uma matéria publicada na Folha de S.Paulo, com o título "Censurado na Europa, filme com pedofilia está em festival no Rio", levou ao Festival RioFan a retirá-lo da programação e ao diretório do DEM (Democratas) no Rio de Janeiro a mover ação ajuizada na 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso para que o filme fosse retirado de circulação. Mesmo sem ter assistido ao filme, a juíza Katerine Nygaard proibiu a exibição do filme no Rio e mandou recolher a única cópia 35mm na véspera de uma sessão no Cine Odeon.

Não importa a denominação: censura ou veto, A serbian film é o primeiro filme a ter exibição proibida no Brasil desde 1985, quando a Igreja Católica, via CNBB, pressionou o Governo a proibir Je vous salue Marie, de Godard. Seu conteúdo testa o limite do que pode ser exibido numa tela de cinema. O filme narra o processo de degradação de um ator pornô que assina contrato para estrelar suposto filme “de arte” que se revela um snuff movie, gênero calcado em situações mórbidas, extremas. O diretor alega que esta é uma resposta às atrocidades provocadas pela guerra em seu país.

“O filme é punk, mas o cinema está aí para quebrar tabus”, diz Kleber Mendonça Filho, programador do Cinema da Fundação. “Não reajo bem a imagens reais de gente morrendo. O único lugar que a violência deve existir é no cinema. Parece que o diretor fez uma lista de temas que não se pode tocar, foi lá e fez. É compreensível que o filme cause repulsa nos mais conservadores. O que é incompreensível é que um país que aboliu a censura em 1988 a pratique em pleno século 21”. Kleber cita outros filmes ultra-violentos que foram exibidos sem problemas, como Irreversível (2002). E lembra que Felicidade (1998), de Todd Solondz, aborda a pedofilia.

Raffaele Petrini diz que tudo não passa de um equívoco e que, dentro dos critérios que condenaram A serbian film, estariam enquadradas obras como Pulp fiction, Psicose e Laranja mecânica, que nos anos 1970 foi proibido pelos militares. “Nenhuma criança foi molestada para que o filme fosse realizado. No nosso site, vamos divulgar um making of que mostra que o bebê é mecânico”.

Flávio Bongi, advogado da Petrini Filmes, diz que houve um “excesso de zelo” por parte do DEM. “Não entendo como violação do Estatuto da Criança e Adolescente, mas sim uma má interpretação da obra. Ao agir de forma preventiva, ele chamou para si uma atitude despótica, com a qual não podemos concordar. A ação atenta até ao nome do partido”.

Kleber Mendonça, que morou na Inglaterra nos anos 1980, diz que os 29 cortes que A serbian film sofreu para que fosse exibido lá é algo normal naquele país. “São decisões de pessoas que não têm visão técnica ou artística, que permite diferenciar cenas de cinema das imagens documentais. No Brasil, o caso é ainda mais grave, pois há uma confusão em torno de um filme que sequer foi visto”.

(Diario de Pernambuco, 30/07/2011)

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