segunda-feira, 2 de maio de 2011
Uma casa encantada
Certo dia, o cineasta carioca Luiz Carlos Lacerda voltava para sua casa no Jardim Botânico quando, fugindo do trânsito, pegou atalho pelo Botafogo. “De repente, quando olhei, estava na porta da vila em que morei nos anos 1970”, conta o diretor. Assim nasceu Casa 9, longa documentário que concorre esta segunda na mostra competitiva do Cine PE - Festival do Audiovisual. Através de depoimentos, ele remonta a cena cultural que girou em torno do local, um sobrado onde também morou Jards Macalé, Sônia Braga e Lenine, que, não por acaso, batizou sua gravadora de Casa 9.
Gente assim atrai semelhantes: Clarice Lispector, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Torquato Neto, Gilberto Gil, Gal Costa, Odete Lara, Waly Salomão, Naná Vasconcelos, Helio Oiticica e muitos outros fizeram da Casa 9 um centro cultural. “Comecei a lembrar quantas histórias vivemos ali. Tudo isso iria morrer com a gente?”. A pergunta de Lacerda, conhecido como Bigode, está respondida com o filme, coproduzido pelo Canal Brasil, que tem nesta noite sua primeira exibição pública.
“O Macalé morava na parte de cima quando eu me mudei pra lá. O lugar foi uma vila familiar construída nos anos 1940 por Artur Araripe, o avô do Paulo Coelho, que morou com o pai e a irmã na Casa 12, que foi derrubada em 1974 e construíram um prédio em que veio morar Paulinho da Viola”.
Na casa de Macalé, se hospedava o pessoal da música. O do cinema ficava na casa do Bigode. Um deles foi Robert Freigman, do grupo da Factory, de Andy Warhol, que veio ao Brasil para fugir da guerra do Vietnã. “Na minha casa vinha Nelson, Glauber, Cacá Diegues. Com Clarice escrevi o roteiro de um curta, adaptado de um conto dela, O ovo e a galinha, que foi filmado em 2003 por Nicole Al Granti, sua sobrinha-neta”, lembra Bigode.
A ligação das duas casas rendeu a parceria entre Nelson Pereira e Macalé, que atuou e fez a trilha de Amuleto de Ogun e Tenda dos milagres. Macalé, aliás, revela ao diretor a história por trás de Vapor barato, composta por ele e Waly em 1974. Mas não repassa ao repórter. “A explicação é longa. Tem que ver no filme”.
A turma de Pernambuco chegou depois que Bigode saiu, em 1980. “Veio Lenine, Ivan Santos e Alex Madureira, que na época eram três hippies”, conta. Com eles, vieram Lula Queiroga, Chico César, Bráulio Tavares e outros artistas e escritores do nordeste. “Era uma casa encantada”, conta Queiroga, que na época morava em Copacabana. “Consolidamos nossa amizade ali. Nós éramos os paraíbas que continuaram a história daquela casa. Assim como tem o centro de tradições gaúchas, fizemos um centro de contradições pernambucanas. Tanto que meu sotaque não mudou nada”.
Estirado entre a ditadura militar e a abundância ideológico-criativa, o período 1970-1980 é tema e tanto para quem se interessa por cultura brasileira. Para Bigode, aquele foi um tempo especial. “O mundo encaretou, hoje em dia as pessoas estão entocadas, cada um cuidando do seu umbigo. O planeta virou yuppie”.
E estende a conversa para o cinema feito hoje. “Só se fala em filmes de mercado, os editais pedem para formalizar público-alvo, fazer perspectiva de bilheteria. E os filmes que não conseguem chegar no mercado? Quem vai contar a história do Brasil daqui a alguns anos? Se eu fosse você, Chico Xavier ou Lírio Ferreira e Paulo Caldas? São as novelas da televisão ou o Júlio Bressane, que há 40 anos faz público de 50 mil por filme? O que é mais importante para a cultura brasileira?”. Uma questão e tanto.
(Diario de Pernambuco, 01/05/2011)
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