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* matéria originalmente publicada na revista Continente, junho de 2008
Há 70 anos, circulava nos Estados Unidos o primeiro número da revista em quadrinhos Action Comics. O desenho da capa chama a atenção pela violência incomum para a época: um desconhecido trajando azul e vermelho destrói um carro, em torno de pessoas assustadas. Em seu peito há um grande S maiúsculo, símbolo que marcaria definitivamente o imaginário coletivo do século 20. Na última página a própria revista anuncia o novo herói como aquele que irá “refazer o destino de um mundo”. Esta foi a primeira aparição pública do Superman, personagem que não somente inaugurou, mas serviu de protótipo para um novo gênero de quadrinhos: os super-heróis.
No Brasil, a data será lembrada com extensa programação e lançamentos. A editora Panini, detentora dos direitos de publicação do herói no Brasil, começou o ano lançando a série Superman Crônicas, em que as primeiras histórias são apresentadas em ordem cronológica. Já a Devir Livraria deve lança ainda este mês o quarto e último volume da série Supremo, em que Alan Moore faz inteligente e sarcástica paródia do herói, no que talvez seja a melhor síntese de sua trajetória estética e conceitual.
Edições comemorativas à parte, é curioso observar como essa mitologia de semideuses defensores do american way, cujo maior representante é o Superman, está intimamente vinculada com o estabelecimento e manutenção da hegemonia dos EUA. “70 anos fazendo o mundo acreditar”, diz um site especializado no personagem.
É de fazer inveja a qualquer ditadura, fascista ou comunista. Afinal, ambas sabem qual o poder dos bens simbólicos sobre uma nação. Tanto que Stálin patrocinou gênios do cinema russo enquanto mandava dissidentes para a Sibéria. E Hitler investiu em publicidade anos antes de adotar campos de extermínio como política pública. De todas, predominou a indústria cultural norte-americana. Foram sete décadas de prosperidade, estiradas entre dois períodos de refluxo: a grande depressão dos anos 30 e a paranóia pós-11 de setembro.
Assim como o país em que foi criado, ao longo dos anos o Superman mudou bastante. Inclusive de discurso. Criado em 1933 por dois adolescentes judeus adoradores de ficção científica, Jerry Siegel e Joe Shuster, o personagem foi concebido como uma ameaça do futuro, com o objetivo de fazer da Terra o reino do Superman. Sua roupa teve inspiração nas histórias do espaço sideral, como Flash Gordon. A cueca por cima da calça, no entanto, era algo inédito que logo se tornaria padrão.
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No ano seguinte ele ressurge como herói justiceiro, capaz de desrespeitar poderes instituídos para resolver os problemas de gente comum. Essa foi a versão publicada em 1938 pela National, futura DC Comics, que comprou os direitos do personagem de Siegel e Shuster por míticos 130 dólares. Os desenhistas aceitaram prontamente. Estavam há cinco anos procurando uma editora disposta a assumir o risco de publicar um material tão diferente - é bom lembrar que os personagens da época eram Tarzan, Príncipe Valente e Mandrake. A popularidade imediata pegou todos de surpresa, inclusive os criadores, que nunca mais obtiveram nada parecido em termos de sucesso.
A chegada do protetor dos oprimidos foi mais do que conveniente para aquele tempo de vacas magras iniciado em 1929, com a quebra da bolsa de valores. Só que nas primeiras histórias, Superman lembrava em quase nada o mocinho politicamente correto que se transformou nos anos seguintes. Ele tinha poderes modestos se comparados com os atuais, mas suficientes para esmurrar – e algumas vezes até torturar – pessoas comuns que se comportavam mal. Os vilões eram mafiosos e ladrões de galinha, mais interessados em extorquir trocados do que em controlar o planeta.
Com o advento da guerra fria, sob a égide do macartismo e a aprovação do código de ética, os comics eram obrigados a trazer exemplos cívicos e de bom comportamento. Foi quando Superman virou o homem de aço. Seu único calcanhar de Aquiles, a kryptonita, não era desse planeta. Passou a voar entre mísseis em vez de pular edifícios. Não raro, figurava com águia no ombro e bandeira listrada ao fundo. Seus poderes garantiram paz no planeta, ameaçado por inimigos empenhados em escravizar a humanidade como Lex Luthor, Brainiac e Darkseid. E assim se passaram três décadas de planos mirabolantes, dimensões paralelas, engenhocas e cientistas malucos, organizados em torno de maniqueísmos e fugas fantasiosas. A ressaca foi grande.
Império em xeque, heróis no divã – Nos anos 80, os super-heróis estavam tão distantes da realidade que o próprio mercado dos comics entrou em crise. Do outro lado do mundo, os mangás japoneses esboçavam uma revolução nos quadrinhos. Por isso, a própria DC Comics chamou o roteirista inglês Alan Moore (autor de V de Vingança) para tentar algo novo. O resultado foi a série Watchmen, em que novos encapuzados e superseres enfrentam problemas de alcolismo, depressão e traumas sexuais. Ao mesmo tempo, se alistam na Guerra do Vietnã e lutam no Afeganistão contra tropas soviéticas.
Nessa mesma época, Frank Miller (criador de Sin City e 300), lançou Batman - O Cavaleiro das Trevas, em que Superman faz uma ponta no papel de marionete da Casa Branca. A surpresa é que ele apanha - e muito. Meses mais tarde, foi reformulado por John Byrne, menos poderoso e mais próximo dos dilemas humanos.
Entre os trabalhos recentes está a elogiada série All Star Superman, onde o escocês Grant Morrison coloca o herói em contagem regressiva para a morte. Provavelmente porque, assim como o país que representa, o mito do Superman busca seu lugar no século 21. Entre infinitas crises, mortes e ressurreições, seu maior desafio é conciliar o discurso de democracia, liberdade e justiça com atentados terroristas e invasões a países árabes. Se é que isso faz algum sentido.