quinta-feira, 31 de março de 2011

70 anos de um mito americano



* matéria originalmente publicada na revista Continente, junho de 2008

Há 70 anos, circulava nos Estados Unidos o primeiro número da revista em quadrinhos Action Comics. O desenho da capa chama a atenção pela violência incomum para a época: um desconhecido trajando azul e vermelho destrói um carro, em torno de pessoas assustadas. Em seu peito há um grande S maiúsculo, símbolo que marcaria definitivamente o imaginário coletivo do século 20. Na última página a própria revista anuncia o novo herói como aquele que irá “refazer o destino de um mundo”. Esta foi a primeira aparição pública do Superman, personagem que não somente inaugurou, mas serviu de protótipo para um novo gênero de quadrinhos: os super-heróis.

No Brasil, a data será lembrada com extensa programação e lançamentos. A editora Panini, detentora dos direitos de publicação do herói no Brasil, começou o ano lançando a série Superman Crônicas, em que as primeiras histórias são apresentadas em ordem cronológica. Já a Devir Livraria deve lança ainda este mês o quarto e último volume da série Supremo, em que Alan Moore faz inteligente e sarcástica paródia do herói, no que talvez seja a melhor síntese de sua trajetória estética e conceitual.

Edições comemorativas à parte, é curioso observar como essa mitologia de semideuses defensores do american way, cujo maior representante é o Superman, está intimamente vinculada com o estabelecimento e manutenção da hegemonia dos EUA. “70 anos fazendo o mundo acreditar”, diz um site especializado no personagem.

É de fazer inveja a qualquer ditadura, fascista ou comunista. Afinal, ambas sabem qual o poder dos bens simbólicos sobre uma nação. Tanto que Stálin patrocinou gênios do cinema russo enquanto mandava dissidentes para a Sibéria. E Hitler investiu em publicidade anos antes de adotar campos de extermínio como política pública. De todas, predominou a indústria cultural norte-americana. Foram sete décadas de prosperidade, estiradas entre dois períodos de refluxo: a grande depressão dos anos 30 e a paranóia pós-11 de setembro.

Assim como o país em que foi criado, ao longo dos anos o Superman mudou bastante. Inclusive de discurso. Criado em 1933 por dois adolescentes judeus adoradores de ficção científica, Jerry Siegel e Joe Shuster, o personagem foi concebido como uma ameaça do futuro, com o objetivo de fazer da Terra o reino do Superman. Sua roupa teve inspiração nas histórias do espaço sideral, como Flash Gordon. A cueca por cima da calça, no entanto, era algo inédito que logo se tornaria padrão.



No ano seguinte ele ressurge como herói justiceiro, capaz de desrespeitar poderes instituídos para resolver os problemas de gente comum. Essa foi a versão publicada em 1938 pela National, futura DC Comics, que comprou os direitos do personagem de Siegel e Shuster por míticos 130 dólares. Os desenhistas aceitaram prontamente. Estavam há cinco anos procurando uma editora disposta a assumir o risco de publicar um material tão diferente - é bom lembrar que os personagens da época eram Tarzan, Príncipe Valente e Mandrake. A popularidade imediata pegou todos de surpresa, inclusive os criadores, que nunca mais obtiveram nada parecido em termos de sucesso.

A chegada do protetor dos oprimidos foi mais do que conveniente para aquele tempo de vacas magras iniciado em 1929, com a quebra da bolsa de valores. Só que nas primeiras histórias, Superman lembrava em quase nada o mocinho politicamente correto que se transformou nos anos seguintes. Ele tinha poderes modestos se comparados com os atuais, mas suficientes para esmurrar – e algumas vezes até torturar – pessoas comuns que se comportavam mal. Os vilões eram mafiosos e ladrões de galinha, mais interessados em extorquir trocados do que em controlar o planeta.

Com o advento da guerra fria, sob a égide do macartismo e a aprovação do código de ética, os comics eram obrigados a trazer exemplos cívicos e de bom comportamento. Foi quando Superman virou o homem de aço. Seu único calcanhar de Aquiles, a kryptonita, não era desse planeta. Passou a voar entre mísseis em vez de pular edifícios. Não raro, figurava com águia no ombro e bandeira listrada ao fundo. Seus poderes garantiram paz no planeta, ameaçado por inimigos empenhados em escravizar a humanidade como Lex Luthor, Brainiac e Darkseid. E assim se passaram três décadas de planos mirabolantes, dimensões paralelas, engenhocas e cientistas malucos, organizados em torno de maniqueísmos e fugas fantasiosas. A ressaca foi grande.

Império em xeque, heróis no divã – Nos anos 80, os super-heróis estavam tão distantes da realidade que o próprio mercado dos comics entrou em crise. Do outro lado do mundo, os mangás japoneses esboçavam uma revolução nos quadrinhos. Por isso, a própria DC Comics chamou o roteirista inglês Alan Moore (autor de V de Vingança) para tentar algo novo. O resultado foi a série Watchmen, em que novos encapuzados e superseres enfrentam problemas de alcolismo, depressão e traumas sexuais. Ao mesmo tempo, se alistam na Guerra do Vietnã e lutam no Afeganistão contra tropas soviéticas.

Nessa mesma época, Frank Miller (criador de Sin City e 300), lançou Batman - O Cavaleiro das Trevas, em que Superman faz uma ponta no papel de marionete da Casa Branca. A surpresa é que ele apanha - e muito. Meses mais tarde, foi reformulado por John Byrne, menos poderoso e mais próximo dos dilemas humanos.

Entre os trabalhos recentes está a elogiada série All Star Superman, onde o escocês Grant Morrison coloca o herói em contagem regressiva para a morte. Provavelmente porque, assim como o país que representa, o mito do Superman busca seu lugar no século 21. Entre infinitas crises, mortes e ressurreições, seu maior desafio é conciliar o discurso de democracia, liberdade e justiça com atentados terroristas e invasões a países árabes. Se é que isso faz algum sentido.

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