segunda-feira, 14 de março de 2011

Jehovah leva a vida na gaita



Jehovah da Gaita é um dos maiores instrumentistas brasileiros, mas continua praticamente desconhecido em sua terra natal. Em 52 anos de carreira ele gravou e tocou com mais de 200 artistas. E ainda hoje tem garra para mostrar seu trabalho em palcos da cidade. Jehovah Tavares de Lucena nasceu no bairro da Boa Vista e, apesar de ter sangue artístico na família (é sobrinho de Aberlardo da Hora e Claudionor Germano), quando jovem ele queria entrar para a Aeronáutica. Mudou de ideia quando, aos 14 anos, assistiu o filme Sempre no meu coração (EUA, 1942), que contava com uma orquestra de gaitas liderada pelo harmonicista russo Borrah Minevitch. "Aquilo me deixou fascinado", lembra o mestre, que comprou uma gaita na feira assim que pode e aprendeu a tocar por conta própria. "Era o único instrumento que dava pra colocar no bolso e levar pra todo canto".

No começo dos anos 1960, Jehovah se juntou com os irmãos Damasceno e sob o nome de Trio Harmônico gravou seu primeiro disco, Cha Cha Cha, Twist, etc, lançado pela Rozemblit. Hoje, o artista que já acompanhou Toots Thielemans, Paulo Moura e Raul de Souza se dedica ao ensino do instrumento às novas gerações (ele dá aula no bairro das Graças, onde mora) e a shows esporádicos. O próximo será sexta-feira, 22h, ao lado de Renato Bandeira, na Casa de Seu Jorge (Av. Santos Dumont, 1066 - Rosarinho).

Jehovah também é referência nacional em manutenção e conserto de gaitas, sendo o único no Norte e Nordeste que oferece esse tipo de serviço. A tarimba rendeu a ele o status de endorsee da Bends, famosa marca' de harmônicas, que fabrica um modelo especial de acordo com suas orientações. Tirei todos os defeitos que encontrei nas outras, como a chave dura, a oxidação".

Em entrevista concedida ao Diario durante o último Garanhuns Jazz Festival, Jehovah contou sobre sua arte e vida, sem deixar de fora uma crítica aos conterrâneos: "Nunca vi terra tão madastra com os filhos. O povo tem vergonha até de aplaudir, mas qualquer porcaria que vem de fora leva tudo, até cachê adiantado". Leia mais a seguir.

Entrevista // Jehovah da Gaita: "Artista hoje é igual programa de computador, programado para ter seis meses de sucesso e depois sumir"

Como foi sua formação musical?
Fui criado na casa da minha avó, onde tio Abelardo tinha uma vitrola antiga, daquelas de corda, onde passava o dia ouvindo música erudita. Tanto que o aparelho se acabou e o meu grande troféu foi ele ter me dado todos os discos e a vitrola, que eu consertei. Aí comecei a conviver com os grandes mestres: Korsakov, Tchaikovsky, Dvorák, Politov, Ivanov. E abri o leque para os compositores com quem eles aprenderam. São grandes mestres, que comiam, dormiam, acordavam, bebiam e viviam música e apesar disso serem tratados como pessoas de segunda categoria, empregados da corte.

E por que elegeu a gaita como instrumento?
Tem instrumentos que ou você rejeita imediatamente ou ama de paixão. É o caso da harmônica, conhecida vulgarmente como gaita. É um instrumento extremamente melódico e que revela muito do músico que a toca. Costumo dizer que ela está na boca, bem pertinho do coração. Tanto que ela nasceu para ser companhia de pastores, marinheiros, andarilhos, que passavam muito tempo longe de suas casas.

De onde veio o gosto pela harmônica cromática (com botão, capaz de tocar as 12 notas da escala)?
Minha primeira gaita era diatônica, de escala simples, que me decepcionou pois queria tocar Maracangalha, de Dorival Caymmi, mas faltava uma nota. Pensei: que gaita vagabunda! Até que conheci um cara chamado Eduardo Nadruz, conhecido como Edu da Gaita e me apresentou a harmônica cromática, o que me permitiu tocar todas as notas da música.

A gaita ficou popular a partir dos anos 1940, através de Hollywood. E hoje, como está o instrumento?
Apesar de serem vendidas 13 milhões de unidades por ano, a gaita ainda é considerada por muitos como brinquedo pra criança. Então antes é preciso provar que ela é um instrumento para depois o músico ser creditado para trabalhar. Ainda assim, é como um sacerdócio, pois ser músico no Brasil é ser cidadão de segunda categoria. Você toca numa casa e a última pessoa que o garçom pergunta se quer água é ao músico.

Então você se sente como os músicos da corte?
Sim. Apesar de que tenho um público fiel que vai para os shows, isso é que gratifica. É como uma eleição em que não fui eleito, mas estou recebendo votos de qualidade. Jamais estive em paradas de sucesso, não quero, detesto, nunca vi parada de sucesso que prestasse para o músico. Tenho 67 anos e já vi muita gente subindo e descendo. Artista hoje é igual programa de computador, programado para ter seis meses de sucesso e depois sumir.

Você também tem uma carreira na publicidade como criador de jingles. Ainda recebe encomendas?
Desisti da publicidade nos anos 1990, mas continuei aceitando compor por encomenda. Mas hoje estou me precavendo. A melodia que concebi com arranjos de Sérgio Campelo (do Sá Grama) para ser usada na série de TV Auto da Compadecida já comprei como tema pra celular, sem o crédito dos artistas. Nunca recebi um tostão por isso. A música foi pro cinema e também não recebi nada.

Nos últimos anos, você se apresentou em restaurantes e praças de alimentação. O que tem feito atualmente?
Graças a essas atividades, sou convidado a me apresentar em eventos. Mas parei de fazer música de fundo, onde você convive com celular tocando, gente discutindo o preço do arroz ou política... O povo não vai pra ouvir a música, que vira um mero digestivo.

(Diario de Pernambuco, 14/03/2011)

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