segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Spiegelman revisto por ele mesmo



Ao lançar Breakdowns, há três décadas, o novaiorquino Art Spiegelman deu o primeiro passo para consolidar conceito cada vez mais comum hoje em dia: o de histórias em quadrinhos como obra de arte. Item de colecionador, o livro volta revisto e ampliado pelo autor, que fez uma introdução ilustrada tão interessante quanto a obra que a antecede, e um texto final que revisa quase 50 anos de carreira - seu primeiro trabalho foi publicado aos 13 anos de idade.

Breakdowns - Retrato do artista quando jovem (Quadrinhos na Cia, R$ 79) usa aquele momento definidor como mote para passar a limpo a história de uma vida. Por exigência de Spiegelman, a edição nacional manteve o formato álbum de luxo, com capa dura e papéis especiais.



A arte da capa sintetiza o recado: o cartunista de meia-idade escorrega não numa casca de banana, como na clássica "gag" de desenhos antigos, mas na própria obra realizada na juventude. Em capítulos, o novo material revê traumas de infância, vida conjugal, a forte presença dos pais e, claro, a descoberta dos quadrinhos como tábua de salvação. Para o autor, pode ser uma forma de lidar com os próprios fantasmas. Para o leitor, é a chance de se deleitar com novas possibilidades narrativas do criador de Maus (1992) e À sombra das torres ausentes (2004).

O livro original, publicado em 1978, traz as primeiras pranchas de Maus, visão pessoal do holocausto judeu (Spiegelman tem origem polonesa - seus pais sobreviveram a Auschwitz), que anos mais tarde seriam aprofundadas em mais de 300 páginas de uma HQ celebrada como a única a ganhar o prêmio Pulitzer. A relação de culpa com a mãe, que se suicidou no fim dos anos 60, e com o pai repressor também estão representadas.

Hoje a linguagem dos quadrinhos é usada para quase tudo, da confissão mais íntima à reportagem de guerra, e seus melhores autores têm status de artista. Mas os tempos eram outros e os que se dispunham a criar histórias com tinta e papel dificilmente eram reconhecidos como tal.

Spiegelman tinha certeza de que era um deles, e que seu livro, uma coletânea do que fez nos cinco anos anteriores, faria diferença no cenário da arte contemporânea daquele momento. Com a ajuda de amigos, colocou cinco mil cópias (algumas com problemas de impressão) no mercado. Ele tinha se encontrado enquanto autor e precisava olhar para o próprio trabalho fora do contexto precário em que foi publicado.

À época, pouca gente deu atenção às inquietações existenciais de um desenhista desconhecido. Mas nestas e outras histórias estão, em estado bruto, os elementos que anos depois dariam notoriedade ao autor e abriram caminho para uma série de autores de quadrinhos experimentais, autobiográficos e que dialogam com outras formas de arte.

Cia das Letras investe nos quadrinhos

Contrariando a tendência do mercado, que em 2009 foi tímido em novos produtos, a Companhia das Letras entrou com os dois pés no filão de quadrinhos adultos. Criou o selo especializado Quadrinhos na Cia., que nos últimos meses trouxe ao país importantes títulos estrangeiros. A primeira leva colocou nas prateleiras Retalhos, de Craig Thompson, Nova York - a vida na grande cidade, de Will Eisner, e O chinês americano, de Gene Lueng Yang. Os mais recentes, além de Breakdowns, são Jimmy Corrigan - O garoto mais esperto do mundo, de Chris Ware e Umbigo sem fundo, de Dash Shaw. A resposta do público foi imediata.

"A editora quis apostar no plano antigo de publicar quadrinhos com constância. Antes, eles eram lançados pelo selo Cia. das Letras, voltados para o público juvenil. Só que muitas vezes são quadrinhos adultos, que ficavam na seção errada das livrarias", diz o editor André Conti, responsável pelo novo selo. "Seguimos a linha editorial da Companhia das Letras, que é descobrir bons autores contemporâneos e resgatar os clássicos. A diferença é que agora aumentou a dedicação para manter regularidade e a busca de quadrinhos autorais".

Entre março e abril serão lançados Bordados, de Marjani Satrapi (Persépolis), o primeiro tomo de Scott Pilgrim, série canadense que mistura estética mangá e videogame, No coração da tempestade, de Will Eisner, Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho, Vishnu, de Ronaldo Bressane e Fabio Cobiaco, e Vento em mala frata, de Emílio Fraia e D.W. Ribatski. Os três últimos inauguram uma série baseada na interação entre escritores e artistas gráficos. O pernambucano Marcelino Freire e o gaúcho Guazzelli estão cotados para o projeto, mas ainda não há nada confirmado. A volta de Lourenço Mutarrelli (Natimorto, O cheiro do ralo) aos quadrinhos também está na pauta.

O revés econômico afetou o mercado de livros em quadrinhos, mas não os planos da editora. "Para nós, a resposta está muito boa. Retalhos, New York e Umbigo sem fundo são os mais vendidos", diz Conti. Alémdo evidente interesse por quadrinhos com qualidade literária, a linha editorial da Quadrinhos na Cia. contemplará HQs de apelo estritamente visual. "Estamos abertos para apostar na diversidade".







(Diario de Pernambuco, 01/02/2010)

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