segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Os mistérios do desejo



Realizador solitário, em A erva do rato (Brasil, 2009) Júlio Bressane oferece uma obra de arte rara no cinema nacional. É um deleite se deparar com um novo manifesto desse autor que filosofa com imagens. O longa entra em cartaz hoje, no Cinema Apolo (Recife Antigo).

Protagonizado por Selton Mello e Alessandra Negrini, o filme adapta livremente dois contos de Machado de Assis: A causa secreta e Um esqueleto. Não é o primeiro Machado de Bressane. Em 1985, ele rodou Brás Cubas, outro manifesto a explorar o que o próprio chama de "motivo fóssil" como importante chave de leitura.

A presença de atores famosos não significa que o filme será algo facilmente compreensível. Erudito na construção das imagens - cada plano é uma obra em si), o extremo rigor estético de Bressane nos faz sentir dentro de uma pintura de luz e formas barrocas, estendidas em planos longos com pouco ou nenhum movimento.

Já a sua narrativa se desenvolve de forma experimental e se movimenta em signos. Os principais são "o rato" e "a vagina", cuja síntese é "o esqueleto". Há vários outros, no filme que se sustenta com apenas dois atores, dentro de uma casa. E isso não é trabalho que se faz só. A fotografia de Walter Carvalho e a câmera de seu filho, Lula, são poderosos aliados.

A trilha sonora minimalista de Guilherme Vaz com trechos de Mozart, idem. O som, aliás, é elemento importante para o entendimento de que, apesar de confinados numa casa colonial de móveis antigos, lá fora a natureza segue seu curso em ondas no mar, vento nas árvores e ruídos de animais noturnos.

Bressane pouco revela sobre a história pregressa dos jovens. A ele interessa mais o que há ancestral em suas atitudes. O casal se (re)conhece no cemitério e logo se une. A mulher está frágil pois acaba de sair da prisão e de se tornar órfã. Ele propõe um casamento instantâneo e incondicional, o que nos leva ao local onde toda a ação se desenrola.

O longa é proibido para menores de 18 anos, pois coloca a atriz em posições sexuais e expõe suas partes mais íntimas. Mas ao contrário do que hoje se considera pornográfico, nada é banal na nudez de Negrinni, que permite ao novo marido exercitar a tara estética com câmera fotográfica e a determinação em reproduzir cenas eróticas dos anos 1920.

O que começa de forma um tanto inocente, com ele ditando trechos da história social e natural (a erva do rato é um tipo de veneno vegetal) do Brasil. Não demora a evoluir para a loucura quando um rato passa a roer fotos e andar pelo corpo da mulher durante a noite, numa repulsiva e linda sequência orgástica.

Muito da beleza de A erva do rato está no mistério. Assim como os melhores clássicos, longe de se esgotar numa única sessão, o filme pode gerar tantas interpretações quantas vezes for assistido.

(Diario de Pernambuco, 22/02/2010)