sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
"A fita branca" ou "O discurso da servidão voluntária" por Michael Haneke
O século 20 foi marcado por rituais de ordem e submissão cinicamente disfarçados de discurso civilizatório. O mais notório atende pelo nome do nazi-fascismo, mas não importa o nome: a violência tem sido a história da humanidade. Também não é novidade que boas maneiras ensinadas às crianças com o aval das instituições é balela. O que chamamos "educação" surge quando os mirins incorporam e reproduzem relações marcadas pelo ódio e vingança que publicamente se traduzem num polido "bom dia".
É desse véu que trata A fita branca (Das weisse band, 2009), Palma de Ouro em Cannes 2009, com estreia marcada para hoje no Cinema da Fundação. Não é a primeira vez que o cineasta austríaco Michael Haneke aborda o tema. Ele já o exercitou com propriedade em filmes como Funny games (1998), Caché (2005) e A professora de piano (2001).
O reconhecimento em Hollywood, onde refez seu primeiro longa a convite da atriz Naomi Watts, não amenizou seu discurso, que continua ácido e impiedoso como sempre. Cenas bizarras de tortura e mutilação são chocantes, mas não tanto quanto as relações estabelecidas entre os moradores de uma aldeia perdida na neve da Alemanha dos anos 1910. Indicada ao Oscar, sua fotografia em preto e branco, impecável, causa fascínio, sufoca, mas não é mais estranha do que a possibilidade de um filme crítico e contundente como este ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Pelos olhos do professor de canto (Christian Friedel), assistimos a um ano de conflitos e decorrências num ambiente rural remoto povoado por personagens arquetípicos: o médico, que abre a história sendo vítima de uma armadilha que o manda direto para o hospital; a parteira, que assumiu a criação do filho deficiente do médico após a misteriosa morte de sua esposa; o padre, rigoroso defensor da moral; e o barão, que domina a todos.
Todos parecem ser figuras particularmente perturbadas, que envergam as crianças às mais baixas humilhações. As crianças, por sua vez, são questionadas sobre a autoria de maldades que vão se acumulando ao longo do filme. Dois dos filhos do padre, por exemplo, são obrigados a usar uma fita branca no braço até provarem sua pureza - um deles dorme com os pulsos amarrados.
Através da voz em off do professor nos situamos na história, contada de forma clássica, linear, objetiva como um romance antigo. O timbre envelhecido dá a entender que, como os remanescentes de Auschwitz, ele sobreviveu a eventos que nunca sairão de sua memória, principalmente sua paixão por Eva, a governanta do filho do barão. A relação entre o médico e a parteira é de crescente importância no desenrolar da trama e revela um bocado da cultura repressiva a que costumamos vincular a tradição alemã.
Leituras que apontam para um filme sobre as raízes do nazismo podem ser um tanto reducionistas. Haneke trata de algo maior, da peste emocional que assola a humanidade desde antes de Cristo - a mesma que levou ao filósofo francês Étienne de La Boetie a tecer seu Discurso da servidão voluntária (1561). No próprio cinema não são poucas as conexões com Dogville, retrato do que há de mais cruel na sociedade norte-americana. Só que em vez de uma mulher, em A fita branca a tortura é com crianças.
Leia entrevista com Michael Haneke aqui.
(Diario de Pernambuco, 19/02/2010)
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2 comentários:
Dibinho, tu deveria colocar uns marcadores qualitativos. Pq eu, (que não tenho tempo nem paciência) para ver todo filme, já iria pelas suas sugestões.
Sugere, vai!
cheiro
Aline
Poxa Dib, tinha esquecido desse filme, preciso ver se ele tá passando aqui em São Paulo. Passei teu blog pro Nerilton, pelo menos pelos posts vamos sabendo notícias suas.
Abraços,
Giuliano
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