quinta-feira, 4 de junho de 2009

Valsa com Bashir e as memórias da Guerra do Líbano



Um documentário nada convencional está em cartaz no Recife. Provocativo seria mais exato, por um certo número de motivos, mas principalmente por narrar uma guerra a partir de memórias, sonhos e delírios. E por fazê-lo na forma de desenho animado - recomendado para adultos, é bom que se diga. Seu nome é Valsa com Bashir (Waltz with Bashir, 2008), vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, entre outros 15 prêmios ao redor do mundo. Valsa com Bashir pode ser visto nos horários reservados à Sessão de Arte do sistema Severiano Ribeiro (hoje às 19h, amanhã às 11h, no Multiplex Boa Vista; segunda, às 19h20 no UCI Tacaruna; dias 12 e 13 de junho, novamente no Boa Vista; e de 15 a 18 de junho no UCI Boa Viagem).

O diretor do projeto, o israelense Ari Folman, é também o personagem principal. Aos 19 anos de idade, ele participou como soldado na Guerra do Líbano, deflagrada por Israel em 1982. O filme apresenta Folman como alguém bastante intrigado com o fato de não guardar lembrança alguma de sua experiência. A única imagem que resta em sua mente é uma situação etérea em que, envolto de água do mar, observa uma cidade destruída sob a luz de sinalizadores noturnos.

O que os próximos 75 minutos mostram é a busca de Folman pela memória reprimida, o que faz do filme uma espécie de divã. Antes, ele procurou seu melhor amigo, o terapeuta Ori Sivan. Ele explicou que a memória é fluida, portanto, passível de ser recriada a cada momento. Ou seja: aos poucos, vira ficção. E que, 25 anos depois, a única forma de ter certeza do que se passou naquele episódio, seria ouvir o relato de outras pessoas que também estiveram lá.



Folman parte então para uma investigação não exatamente jornalística, pois passa por seqüências lisérgicas (a opção pelo formato desenho animado ajuda muito no resultado) e musicais – a trilha sonora pop traz canções de OMD, PIL e um remake do grupo Cake para Korea, rebatizada Beiruth.

Uma pegada “rock’n’roll” já vista anteriormente nas histórias de Joe Sacco, autor de várias reportagens em quadrinhos, inclusive no front árabe-israelense. Outro antecedente é Persépolis, HQ/desenho animado baseado nas memórias da iraniana Marjani Satrapi sobre a revolução islâmica de 1980. Bashir, aliás, também virou livro em quadrinhos, lançado no mês de abril pela L&PM Editora.

Valsa com Bashir é um marco no cinema de animação, não somente por ter sido a primeira produção do gênero a ser indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Mas porque provavelmente é o exemplar mais bem acabado do que pode ser um novo gênero: o documentário de animação (no Brasil temos um ótimo exemplo em curta-metragem, a produção paulista Dossiê Rê Bordosa).

Para tanto, ele conciliou técnicas de produção diferentes, como a animação vetorial (ou em “flash”), 3D e a convencional, com desenhos feitos à mão. O resultado final é parecido com as experiências de Richard Linklater em Waking life (2001) e O homem duplo (2006), em que cenários são mais “reais”, e os personagens, mais perto do cartoon. O que, na prática, e dependendo do grau de envolvimento do espectador, pode gerar uma identificação bem próxima da hipnose.

Aqui é bom diferenciar as técnicas usadas por Forman e Linklater. Enquanto o primeiro utiliza personagens filmados apenas como referência para a criação do movimento, o segundo transforma a imagem gravada em animação, de acordo com o processo batizado de rotoscopia.



Estetização da violência - Guerras são tidas como o principal elemento motivador do desenvolvimento tecnológico. No campo da arte, ela tem sido tema de obras com alto teor de deleite visual e pesquisa de linguagem. Exemplo recente é a série O fotógrafo, uma espécie de híbrido entre HQ e imagens fotografadas por Didier Lefreve durante a invasão russa ao Afeganistão, em 1985.



Ao espetacularizar os efeitos de tanques esmagando carros e soldados atirando aleatoriamente nas ruas de Beirute, a estética de Valsa com Bashir também experimenta e expande os limites do documentário. Inclusive ao inserir imagens de arquivo em que mulheres confinadas ao extermínio gritam em desespero. Elas estão lá, estrategicamente posicionadas para nos lembrar de que aquelas situações foram, e continuam bastante reais.

É verdade que o trauma fortemente reprimido pelo diretor Ari Folman pode ser entendido como sintoma de qualquer guerra, mas é preciso considerar o caso específico aqui levantado. Israel invadiu o Líbano em junho de 1982, como resposta a mísseis disparados em Israel por extremistas palestinos radicados no país. Foram três anos de sangrenta ocupação. Nesse período, o país se tornou um campo de extermínio de palestinos, promovido por falanges cristãs. Se não há como provar o envolvimento direto de Israel, é possível concluir que ao menos houve conivência de suas autoridades, lideradas pelo então secretário de defesa Ariel Sharon. A matança foi deflagrada após Bashir Gemayel, candidato cristão à presidência do Líbano, ter sido vítima de um atentado a bomba.

Nesse contexto, fica simples compreender a postura ambígua dos cidadãos israelenses perante o drama do povo palestino, assentado em países vizinhos após serem expulsos de suas terras em prol da criação do estado de Israel. Tome o exemplo de Folman. Seus pais, como os de seus companheiros de geração, sobreviveram ao nazismo, cuja prática fez dos judeus as maiores vítimas do século 20. Por outro lado, há o sentimento de culpa pelo que desde 1948 seus líderes vêm fazendo – e ele mesmo fez ao pegar em armas – contra o povo palestino. A desproporção de forças se reflete no número de vítimas do conflito de 1982: entre 17 e 25 mil árabes mortos, contra 344 do lado israelense.

Produzir este filme pode ter sido um processo terapêutico para o diretor, que sentiu na pele o horror do massacre. Completamente compreensível enquanto manifesto individual. Enquanto produto internacional (uma co-produção entre oito países, entre eles Israel e Estados Unidos) distribuído pela Sony, a coisa ganha outra dimensão, ideológica, inclusive. Para os palestinos, no entanto, trata-se apenas de um suspiro reflexivo que, se não vier acompanhado de atitudes conciliatórias, não fará muita diferença na contagem dos corpos.

*publicado no Diario de Pernambuco, com alterações

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