quinta-feira, 10 de abril de 2008
Retratos de Guerra - O Fotógrafo, de Didier Lefrève
A série francesa O Fotógrafo – uma história no Afeganistão, consagrada por trazer o testemunho sobre um país arrasado pela guerra, chega ao segundo volume de sua versão brasileira.
Seu valor não está somente nas fotografias que denunciam os absurdos belicistas, ou revelam as áridas paisagens do Afeganistão e a cultura de seu povo. Está na linguagem adotada para contar essa aventura de forma direta e fluida: a de história em quadrinhos.
O fotógrafo que dá título ao livro é o francês Didier Lefèvre.
Nos anos 80, ele acompanhou uma equipe da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em uma expedição de três meses ao Afeganistão. Com a guerra fria dominando o mundo, o País fora invadido por tropas soviéticas. Em rápida resposta, os Estados Unidos abasteceram os rebeldes com armas e suprimentos, o que alimentou uma guerra de nove anos (1979-1988).
Quinze anos depois, as fotos e depoimentos de Lefèvre serviram de matéria prima para Emmanuel Guibert e Fréderic Lemercier produzir uma história em quadrinhos diferente de qualquer outra.
Nela, os desenhos coloridos se intercalam com pequenas fotografias em seqüência, espalhadas pelas páginas, tecnicamente conhecidas como “copião”. Graças a ao “copião”, é possível eleger qual a melhor imagem e enquadramento para ampliação. É possível acompanhar esse processo ao ler o livro: as fotos marcadas com caneta vermelha indicam o trabalho de Lefèvre. Logo após, a fotografia ampliada dá a dimensão impactante de seu olhar.
Narrada em primeira pessoa por Lefèvre, O Fotógrafo chama a atenção para o corajoso trabalho das equipes da MSF, que muitas vezes arriscam entrar clandestinamente em países em conflito para cuidar de sua população.
Criada em 1971, a organização já atuou em dezenas de guerras, sendo o Afeganistão o primeiro país a receber um projeto de longo prazo. Atualmente, a MSF mantém 22 mil profissionais e em mais de 70países, inclusive o Brasil.
No primeiro livro, a caravana cruza infinitos vales e montanhas arenosas para oferecer serviços médicos às vitimas da guerra. Além das dificuldades enfrentadas, suas fotos em preto-e-branco registraram paisagens e costumes de um país predominantemente muçulmano.
Neste segundo volume, a expedição chega a seu destino: um precário casebre que servirá de hospital para toda a região de Zaragandara. No mesmo dia, pessoas surgem com diferentes problemas, de acidentes caseiros a ferimentos graves provocados pelo conflito armado. O dia a dia dos médicos não é fácil. A procura é grande, e as condições de trabalho são terrivelmente baixas.
Uma das melhores passagens do livro se dá quando o fotógrafo, impressionado com as baixas condições de higiene e a completa falta de estrutura do local, pergunta a um médico como é possível exercer a profissão em condições tão adversas como aquela.
“Gosto muito do progresso. Os scanners, os exames complementares... Ainda bem que eles existem! Mas, quando não existem, é preciso fazer sem eles. E aí você reaprende a ficar atento, a escutar um corpo, a interpretar um suor frio ou uma linha que está ficando azul. Você reaprende a essência da profissão”, responde o médico.
Ao contrário dos colegas médicos, esta foi a primeira visita de Lefèvre ao Afeganistão – ele retornaria ao País algumas vezes, inclusive durante a guerra provocada pelos atentados de 11 de setembro. Além disso, esteve em outros países acompanhando os MSF, como Libéria, Kosovo, Sri Lanka e Camboja. A atividade o tornou mundialmente conhecido.
Lefèvre morreu aos 49 anos, em janeiro do ano passado, vítima de um ataque cardíaco. Algumas semanas antes, foi premiado pelo salão de Angoulême pelo terceiro e último volume de O Fotógrafo. Seu trabalho continua disponível na internet, através do site Digital Roads.
De acordo com a assessoria de imprensa da Conrad, O Fotógrafo Vol. 3 será lançado no Brasil ainda este ano.
FOTOJORNALISMO OU QUADRINHOS?
O Fotógrafo é um livro de fotojornalismo ou de quadrinhos? Por usar das duas linguagens de forma inédita, configura algo híbrido, quem sabe um novo produto de comunicação.
O jornalismo em quadrinhos é quase tão antigo quanto a imprensa. No Brasil do século 19, por exemplo, o pioneiro Ângelo Agostini denunciou abusos contra escravos através de desenhos legendados em seqüência nas páginas dos jornais.
Apesar da longevidade do gênero, reportagens em quadrinhos ganharam notoriedade a partir de 1992, quando Art Spiegelman, filho de judeus poloneses, ganhou o prêmio Pulitzer por Maus – relato de um sobrevivente.
O reconhecimento público trouxe à tona relatos de guerra em quadrinhos publicados anteriormente, como a série GEN Pés descalços¸ em que o japonês Keiji Nakazawa faz um emocionante relato sobre os absurdos da guerra e como sobreviveu à bomba de Hiroshima. E abriu caminho para uma nova geração, cujo maior representante é o jornalista e desenhista Joe Sacco. Entre seus livros estão Palestina – uma nação ocupada, Sarajevo e Área de Segurança: Gorazade, todos publicados no Brasil pela Conrad Editora, a mesma que agora traduz O Fotógrafo.
Por sua vez, a fotografia de guerra começa em 1854, na Guerra da Criméia, registrada pelo inglês Robert Fenton. A partir dos anos 1920, fotógrafos ganharam agilidade e mobilidade com as máquinas portáteis. Seu auge aconteceu no Vietnã – o maior exemplo é a imagem de uma garota correndo com o corpo queimado pelo napalm, que fez a opinião pública mundial voltar-se contra a ocupação norte-americana.
Ao contrário das atuais coberturas de guerra, em que notícias impessoais são produzidas à distância a partir de material de agências internacionais, o testemunho visualmente instigante de O Fotógrafo é mais uma prova de que os quadrinhos podem tratar temas complexos como a guerra com mais profundidade e humanismo do que na anestesiada grande mídia.
** originalmente publicado no Caderno B da Gazeta de Alagoas.
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