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“Sonhar, contar. Eu nasci para isso”, confessa o artista francês David B. ao leitor de Epiléptico - Volume 2 (Conrad, R$ 44,90), livro que encerra a série originalmente publicada em seis volumes sob o nome de L'Ascension du Haut-Mal (em francês: A ascensão do grande mal). Agora, é possível acompanhar até o fim a viagem confessional de Pierre-François Beauchard – nome de batismo do desenhista – em torno da epilepsia de seu irmão mais velho, Jean-Christophe. Conviver com a incurável doença foi um verdadeiro pesadelo em família. Por sua vez, a angústia representada em desenhos rendeu uma das mais fascinantes histórias em quadrinhos já feitas.
No primeiro volume, David B. encontra na própria imaginação um refúgio para a alma. As inúmeras crises do irmão mobilizam a família no que virou uma eterna busca da cura. Ao longo dos anos, peregrinaram atrás de qualquer possibilidade de tratamento ou até mesmo alívio: medicina convencional, homeopatia, macrobiótica, terapias alternativas, filosofia, religiões e curandeirismo.
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Agora, entre a adolescência e vida adulta, Jean-Christophe se apega à doença para garantir a segurança e o afeto familiar. Cada vez mais próximo do ostracismo, se incentivado a procurar novos tratamentos, Jean-Christophe transforma sua fixação pelo nazismo em perigosos acessos de raiva e violência.
Enquanto enfrenta as amarguras de lidar com o irmão, Pierre François se define enquanto profissional do lápis e papel. Assim como era quando criança, David continua a preferir os fantasmas de sua “floresta imaginária” a encarar monstros bastante reais como a epilepsia do irmão (brilhantemente representada por uma mistura de serpente e dragão chinês), e toda a sorte de médicos, especialistas e gurus que se propuseram a cuidar da doença. Adota o nome David (por afeição à cultura judaica) e, no lugar das batalhas históricas que tanto o fascinaram na infância, passa a desenhar seres oníricos, inspirados na literatura fantástica e nas ciências ocultas. Pouco tempo depois, David passa estudar publicidade em Paris, dando início à sua trajetória profissional.
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O sentimento e frustração e impotência por não curar o irmão isolou David em seu próprio mundo, onde imaginava vestir uma armadura medieval. Foi sua forma de se proteger e seguir em frente. Quando Epiléptico foi publicado, até mesmo sua família se surpreendeu com suas histórias, guardadas por tantos anos, somente confidenciadas a seus leitores. Sorte nossa. Se tivesse recorrido à psicanálise para exorcizar seus fantasmas, não faria um livro tão impressionante, e assustadoramente humano.
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DAVID B., MONSTROS E FANTASMAS
Aos 50 anos, David B. figura no rol de desenhistas que expandiram a linguagem dos quadrinhos. Durante décadas, ele sonhou em salvar o irmão da epilepsia, assim como trazer da morte o avô materno. Sentimentos que refletiram na sua existência e influenciaram decididamente a sua expressão artística. Para ele, desenhar “é uma maneira de espantar a infelicidade. É uma mágica”, revela, nas páginas de Epiléptico. “Eu li um monte de histórias que me fizeram bem. Eu também gostaria de tocar as pessoas com os meus livros”, completa o autor.
Com excepcional liberdade de expressão, David B. extrapola o gênero autobiográfico ao acrescentar profundidade existencial à narrativa. Esta, fragmentada e hipnótica, é construída por referências filosóficas e citações poéticas, reminiscências infantis e representações gráficas de sentimentos. Além disso, há a metalinguagem. Este recurso que encontrou terreno fértil nas HQs, está presente de tal forma que fica impossível separar as desventuras da família Beauchard do processo criativo do autor.
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Ao longo de duas décadas, David B. buscou formas de traduzir em imagens sua convivência íntima com a epilepsia. A gramática dos quadrinhos por ele adotada se mostrou não somente a melhor, mas a única maneira de comunicar essa experiência em sua totalidade. A literatura está lá, como elemento básico em sua formação pessoal. Assim como as artes plásticas – a solução encontrada para representar a epilepsia no corpo do irmão passa claramente pela estética cubista.
No final dos anos 1970, Will Eisner elevou o status das histórias em quadrinhos ao nível de arte, ao publicar uma série de álbuns sob o conceito de literatura gráfica, ou graphic novel. A partir de então, um debate se abriu em torno do tema: seriam os quadrinhos um subgênero literário ou uma arte em si? Com arroubos de genialidade, Epiléptico coloca ponto final na discussão.
** originalmente publicado no Caderno B, da Gazeta de Alagoas
Um comentário:
Hoje eu passei o dia todo lendo blogs interessantes agora vou encomendar o meu jantar em um delivery pela internet e novamente vou asistir réquiem para um sonho.
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