domingo, 21 de junho de 2009

O marco zero do cinema pernambucano





Um dos pioneiros do cinema pernambucano está prestes a retornar às telas. Trata-se de Ugo Falangola, jornalista e publicitário italiano responsável pelo filme Veneza americana (1924), um dos primeiros documentários realizados no estado. Essa história, repleta de lacunas e mistérios será contada pelo curta-metragem Janela molhada, do cineasta Marcos Enrique Lopes.

O título do filme, viabilizado pelo concurso de roteiros Rucker Vieira da Fundação Joaquim Nabuco, faz referência ao processo químico de restauro aplicado pela Cinemateca Brasileira em duas obras da Pernambuco-film, produtora fundada no bairro de São José por Falangola e seu conterrâneo, J.Cambieri: Veneza americana e Recife no centenário da Confederação do Equador.

Farangola e Cambieri faziam parte do chamado cinema de "cavação", ou naturalista, em que filmes eram rodados sob encomenda de políticos e coronéis. O termo foi uma forma de desvalorizar essa prática cuja regra era "cavar" oportunidades financeiras. "A diferença é que eles tiveram um apuro técnico singular entre os documentários daquela época", diz a pesquisadora pernambucana Luciana Corrêa de Araújo, que atua como consultora no curta de Lopes. "Com a restauração, dá pra perceber a qualidade desses trabalhos".

A figura de J. Cambieri permanece um mistério a ser desvendado por estudiosos desse obscuro período. Diferente de Falangola, cuja memória foi preservada tanto pela família quanto pelas instituições que guardam o que restou de seus filmes. Nascido em 1879, o patriarca desembarcou no Porto de Santos em 1904. Ele veio ao Brasil como contratado do jornal La Setimanna del Fanfulla, feito por imigrantes italianos em São Paulo.

"Como ele veio parar no Recife, ele nunca contou", diz sua filha, Adriana Falangola Benjamin, hoje com 90 anos. Dona Didi, como é conhecida, era a estrela dos filmes do pai. Com apenas seis anos de idade, ela figurava de vestido e laço na cabeça, em vinhetas que abriam e encerravam cada produção. "Sabe aquele leão da Metro?", brinca Dona Didi, que recebeu a equipe de filmagem na casa herdada pelo pai, no bairro da Torre.

A família descreve Ugo Falangola como intelectual da burguesia romana, o que deve explicar a precisão técnica e a inclinação artística de seus fotogramas. "Ele sabia filmar, enquadrar, expor. Fazia planos muito bonitos, próprios de quem tem conhecimento técnico prévio. Mais ainda, ele soube adaptar o olho a uma luz tropical, contrastada", diz o veterano Carlos Ebert, fotógrafo do clássico do cinema marginal O bandido da luz vermelha e que assina a direção de fotografia de Janela molhada.

Esse domínio técnico permitia a Falangola experimentar uma gama de cores obtidas a partir de minerais diretamente aplicados na película de nitrato, agora recuperadas pela Cinemateca. O processo de janela molhada é anterior a esse, e consiste em banhar cada fotograma deteriorado numa solução que preenche imperfeições e permite a passagem uniforme de luz pela película.

Inquieto, Falangola desistiu da carreira no cinema em prol da atividade publicitária. Ainda em 1925, repassou o equipamento e a sede da Pernambuco-film para a nascente Aurora-film, que nos meses seguintes produziu Aitaré da praia, de Gentil Roiz e A filha do advogado, de Jota Soares.



Diretor alimenta ideia há oito anos

"Olha o tesouro que a gente acaba de encontrar", disse Carlos Ebert, que direcionou o olhar da equipe de Janela molhada para um casarão em ruínas, em frente aos armazéns do Recife Antigo. A fachada castigada pelo tempo quase não permitiu a leitura do letreiro que dizia: Palazzo Italia. A surpresa geral encontra explicação no depoimento de Dona Didi, que horas antes lembrava que ela frequentava o local acompanhada do pai.

Essa e outras histórias poderão ser assistidas em agosto, quando o documentário será lançado no formato HD. "O objetivo final é transferir para película 35mm, através do apoio de outros editais", diz Marcos Enrique Lopes. Por enquanto, ele trabalha com o orçamento líquido de R$ 29 mil (já descontados os impostos), e conta com a estrutura técnica e logística da Massangana Multimídia (Fundaj).

As gravações começaram em março, e seguem até o fim de julho, com locações no Recife e São Paulo, onde os filmes da Pernambuco-film foram restaurados. A edição, que contará com entrevistas, imagens de arquivo e locações do Recife contemporâneo também será no Sudeste, a cargo de Idê Lacreta, cujo vasto currículo inclui a montagem de O prisioneiro da grade de ferro.

A pesquisa para o projeto começou em 2001, quando o cineasta conheceu a família de Farangola. Naquele mesmo ano, Lopes estreava na direção com o filme sobre o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho, A composição do vazio. O trabalho, que contou com fotografia de Walter Cavalho, chamou a atenção da crítica, e circulou por 24 festivais e cinco países.

Agora, o diretor enfrenta o desafio não só do segundo filme, mas da responsabilidade de realizar um trabalho calcado na história, e com o qual estabeleceu uma relação afetiva. "Após tanto tempo, me sinto um pouco defasado com relação às mudanças do sistema digital", confessa Lopes que, para superar esse "gap", conta com a experiência de Ebert, introdutor da fotografia em alta definição, como a que trabalhou nos filmes À margem da imagem e Do luto à luta, de Evaldo Mocarzel.

Lopes, que por oito anos esteve à frente da cinemateca municipal Alberto Cavalcanti, desenvolve outro projeto ligado a filmes antigos. Ele quer contar o processo de restauração de O vôo do Jahú (1927), registro parcialmente recuperado da chegada do primeiro avião a cruzar o Oceano Atlântico sob o comando de um brasileiro.

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