terça-feira, 10 de agosto de 2010

Festival de Gramado // Um Balzac para pensar o cinema



Nem Luciano Szafir, nem Paula Lima. A estrela da noite de domingo foi Honoré de Balzac. Não é pouco, para um festival que celebra os famosos do momento, evocar o escritor francês nascido 200 anos atrás. Pois foi através de Balzac e de obras em torno dele que o cineasta baiano Geraldo Sarno encontrou elementos para refletir sobre o processo de criação artística.

Com citações de Paul Valéry ("Nada é mais abstrato do que aquilo que é"), pintura, literatura e música erudita, o viés de O último romance de Balzac é, no mínimo, polêmico. O filme traz à tona a obra O avesso de um Balzac contemporâneo (Editora Lachâtre, R$ 48), análise "arqueológica" feita pelo psicólogo Osmar Ramos Filho sobre uma obra psicografada por Waldo Vieira (parceiro de Chico Xavier) em 1965, pelo espírito de Balzac. Faz também uma livre adaptação em de A pele de Onagro, um dos primeiros romances do escritor. Dentro da estética do cinema mudo, este "filme dentro do filme" é estrelado por José Paes deLira, mais conhecido como o Lirinha do Cordel do Fogo Encantado. Também estão no elenco Simone Spoladore e Ernesto Sollis.

Geraldo e Lirinha se encontraram na predileção de ambos por cantadores da fronteira Pernambuco/Paraíba foi fundamental para que Lirinha topasse entrar no projeto. Nos anos 1960, Geraldo rodou vários documentários sobre o tema. Por sua vez, declamadores como Pinto do Monteiro e Patativa do Assaré foram a primeira referência arrebatadora na formação de Lirinha.

Na manhã seguinte à exibição, durante o debate com a imprensa, o filme deu o que falar. Alguns não resistiram à tentação de taxá-lo de espírita, que estaria engrossando essa tendência que está tomando conta do cinema nacional. Hoje, por exemplo, Sylvio Back exibe em Gramado seu Contestado - restos mortais, documentário de 2h30 em que, através de 30 médiuns, ex-combatentes narram detalhes da guerra que ocorreu há 100 anos entre o Paraná e Santa Catarina. De formação marxista e com outros filmes que abordam questões religiosas como Viramundo, Iaô e Deus é um fogo, ele nega qualquer inclinação espírita do longa. "O filme não tem visão religiosa ou doutrinária. Eu não sou espírita. Respeito a visão do Waldo, que encaro como o processo de criação em que o artista, mesmo não religioso, pode viver. Não são poucos os artistas ou filósofos que se dizem possuídos no momento de criação".

De acordo com Sarno, a interpretação do professor Osmar traz aspectos centrais na obra de Balzac, inéditos na crítica mundial. Que levaram não somente à A pele de Onagro, como ao pasticho de uma pintura de Paul Potter, considerado por Balzac como o Rafael dos animais. O projeto original incluía uma viagem a Paris, para documentar o universo do autor, logo abandonado em prol da releitura de Onagro. Nele, Rafael Valentin (Lirinha) aceita abreviar sua vida, em troca da realização de todos os seus desejos.

Ao Diario, Lirinha disse que antes de aceitar o papel, precisou superar sua resistência com as exigências do cinema. No entanto, no fim da ressaca provocada pela separação do Cordel do Fogo Encantado (seu primeiro disco sem o grupo sai no começo do ano), ele tem motivos para se identificar com Balzac e seu personagem. “A Teoria da Vontade é uma metáfora do trabalho artístico, em que ele encara dificuldades e decepções em busca do reconhecimento. Também me identifico com a ideia do suicídio na arte, a busca pelo recomeço, a morte como o inicio de algo novo. E Rafael vai cada vez para o subterrâneo, até chegar na situação de que ele não pode mais se apaixonar senão morre”. Além de protagonizar Balzac, Lirinha faz uma pequena homenagem a Glauber Rocha no inédito Transeunte, novo filme de Eryk Rocha.

Após a sessão e também no debate, não foram poucas as críticas ao filme de Sarno. O diretor responde que procura filmes de ruptura. E que assume o risco "suicida" de fazer o que não sabe. "Espero não ser aceito por quem busca entretenimento. Quero estar contra a corrente. Talvez não crie uma nova língua, então gaguejo para não falar a língua do cinema dominante".

Diario de Pernambuco, 10/08/2010)

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