terça-feira, 17 de agosto de 2010

René Descartes descobre o Recife



Um filme incomum encerrou o 38º Festival de Cinema de Gramado. Ex-isto, de Cao Guimarães (Rua de mão dupla, Da janela do meu quarto), reforça as relações Minas-Paraná-Pernambuco em um viés radicalmente poético e experimental. O ponto convergente é o livro Catatau, publicado em 1975 por Paulo Leminski. Nele, o escritor curitibano coloca o filósofo e matemático francês René Descartes na comitiva trazida por Maurício de Nassau ao Recife. A hipótese não é toda descabida. Contemporâneo de Nassau, Descartes viveu por 20 anos em território holandês.

Rodado em 15 dias nos estados do Amapá, Alagoas, Pernambuco e Distrito Federal, o longa conta com João Miguel (Estômago) no papel de Descartes, ou como Leminski o batizou, Renato Cartesius. O que o diretor mineiro faz é trazê-lo do século 17 ao 21, onde, consternado, transita entre o povo nas ruas sujas, entre trabalhadores no terminal de ônibus e estuda os ângulos da arquitetura de Niemeyer. Quase no fim do filme, o próprio Leminski traduz as imagens em palavras: Catatau é sobre "o fracasso da lógica cartesiana branca no calor, emblema do fracasso do projeto batavo no trópico". Em diálogo com o Discurso do método, em que Descartes enuncia o célebre Cogito ergo sum (Penso, logo existo), temos mais explicações para Ex-isto (o próprio Leminski assina um livro póstumo chamado O Ex-estranho).

Ao Diario, Guimarães diz que não se trata de uma adaptação literária, mas de uma reinvenção a partir da obra, publicada em 1975. "Leminski é nosso guia, ele dá o espírito que nos permite apostar em algo criativo, forte, impregnada no autor". Para filmar as cenas de Ex-isto, foram utilizadas câmeras fotográficas Canon 5D, equipamento cada vez mais adotado em produções de baixo custo. "É a evolução tecnológica. Já trabalhei com Super 8, 16mm e Vídeo. É perfeito para o tipo de cinema que faço, porque dá para acompanhar de perto todas as fases".



Para filmar a etapa local, Guimarães contou com o apoio de João Júnior, da Rec Produções. Outro parceiro e amigo da "Mauristad" presente no filme é Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus), com quem foi dividida a montagem. "Geralmente edito meus filmes sozinho, mas após 20 dias de trabalho, precisei de um olhar de fora e convidei o Marcelo para vir a Minas", diz Guimarães, que já dirigiu com Gomes o curta Concerto para clorofila e desenvolve com ele o terceiro filme da Trilogia da solidão (A alma do osso e O andarilho), que se chamará Homem das solidões, inspirado em Edgar Allan Poe.

Ao navegar pelo Capibaribe, o visitante europeu cumprimenta turistas no Catamarã. No Gabinete Português de Leitura, procura suporte intelectual para o caos em que se tornou a cidade maurícia. O movimento de câmera repousa na fachada do Cine São Luiz. No Mercado de São José, se inebria com o barroquismo de visões e odores díspares. No fim da noite, embriagado numa gafieira em Brasília Teimosa, suas certezas estão há muito abaladas. E abre um sorriso. "Sei mais de mim que de outros mas tem muitos outros em mim, que eu não sei", conclui Renato, no livro. "Quis apresentar a cidade através do rio, de dentro pra fora. Por isso, é como se o personagem estivesse sempre flutuando. Propositadamente, ele não se relaciona com as pessoas. Quis colocá-lo onírico, contemplativo".



A metrópole reinventada por Guimarães representa não só uma cidade, mas todo o Brasil. "Não é à toa que o Recife está misturado com Brasília, que simboliza a utopia brasileira, que vinha da ideia da razão. E optei por filmar a pororoca do Amazonas pelo simples fato do Leminski citá-la como o encontro do tropicalismo com a poesia concreta, uma pororoca cultural".

Iconoclássicos - Primeira incursão do Instituto Itaú Cultural no âmbito da produção cinematográfica, Ex-isto inaugura o projeto Iconoclássicos, dedicado a explorar o universo de artistas brasileiros contemporâneos que causaram e continuam causando turbulências. A caminho estão quatro outros filmes, sobre Zé Celso Martinez Corrêa, por Tadeu Jungle; Nelson Leirner, por Carla Gallo; Rogério Sganzerla, por Joel Pizzini; e Itamar Assumpção, por Rogério Velloso. Eles já haviam sido tema do projeto Ocupação, que levantou arquivos e documentos dessas "entidades" que continuam influenciando gerações.

De acordo com Roberto Cruz, gerente do núcleo de audiovisual do Itaú Cultural, Ex-isto deve percorrer o circuito de festivais até que entre em cartaz nacionalmente, em salas específicas. "Temos muita expectativa de que esse tipo de cinema entre, não no circuito mercadológico, mas em exibições com entrada franca". O primeiro a chegar aos cinemas, no entanto, deve ser o longa sobre Itamar Assumpção, que fica pronto em outubro. "Vamos promover ações de difusão para estabelecer uma grandeitinerância com instituições parceiras, como o circuito Unibanco Arteplex, com quem estamos em conversação".

(Diario de Pernambuco, 17/08/2010)

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