segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A crueldade arquitetônica ao redor



A enviesada relação entre pessoas e o espaço em que vivem é o tema de O som ao redor, filme que há três semanas vem sendo rodado nos bairros de Boa Viagem e Setúbal. A produção, que marca a estreia de Kleber Mendonça Filho (Recife frio, Vinil verde) no formato longa de ficção, mobiliza uns 60 técnicos e um elenco de 70 pessoas. Até o momento, cerca de vinte casas e apartamentos da Zona Sul do Recife serviram de locação. No elenco estão Irandhir Santos, que vive o segurança Clodoaldo; Gustavo Jahn é João, que adminstra os imóveis da família; Maeve Jinkins (que atuou em Falsa loura, de Carlos Reichenbach, e hoje vive no Recife) é Bia, casada com Ricardo (Dida Maia). Ainda no elenco principal, Sebastião Formiga, Irma Brown, Lula Terra e Waldemar José Solha.

Eles protagonizam histórias autônomas, que justapostas, compõem o panorama almejado pelo diretor. O cenário específico é uma rua de Setúbal, onde Kleber cresceu. No entanto, ele diz que o filme não se reduz à realidade de um bairro. "Não sei exatamente sobre o que é o filme, mas há a ideia recorrente de como as cidades se relacionam com as pessoas. Estou filmando em Setúbal, mas poderia ser em Casa Forte, na Boa Vista, ou em qualquer outra cidade do Brasil ou da América Latina", disse o realizador.

Na manhã da última sexta-feira, o set foi montado no Edifício João Costa, em Boa Viagem. Cerca de 24 crianças e 11 babás que habitam o condomínio participaram das filmagens. A câmera, acoplada em um sistema steadycam, flutua por trás das crianças até chegar ao playground. “O objetivo da cena é o paredão de empregadas encostadas na parede”, diz Kleber, que, para operar o equipamento, conta com o carioca Fabrício Tadeu, considerado um dos melhores do Brasil.

Tadeu, que traz no currículo os filmes Cidade de Deus, Desmundo e A suprema felicidade, novo filme de Arnaldo Jabor, foi trazido para a equipe através de Pedro Sotero, diretor de fotografia de Um lugar ao Sol e Amigos de risco, dois longas da Símio Filmes.



Membros da Símio, aliás, foram incorporados à equipe da Cinemascópio, produtora de Kleber: Juliano Dornelles faz a direção de arte; Daniel Bandeira, a continuidade. Na Clara Linhard e Milena Times são assistentes de direção. A montagem será de Kleber e João Maria. E a produção executiva, de Emilie Lesclaux. O som ao redor está sendo filmado em 35mm techniscope, variação do cinemascope que permite imprimir o dobro de quadros no mesmo espaço da película. Assim, o custo de negativo é reduzido pela metade.

Primordial para o projeto, o som é captado pelo belga Nicolas Hallet, profissional premiado e que cada vez mais tem concentrado suas atividades em Pernambuco. Seu trabalho vai muito além de registrar a voz dos atores. A ideia é acrescentar um ambiente sonoro ao que está sendo visto. Em uma das cenas, há uma construção do lado da cozinha onde se dá a ação. "Não há equipamento no mundo que consiga abafar o barulho de uma betoneira funcionando. Então abrimos tudo", diz Hallet.

Entusiasta do projeto, o ator WJ Solha diz que tinha resolvido parar de atuar, até que leu o roteiro. "É uma ótima sacada essa visão de fazer um filme sobre a classe média, que foge do estereótipo do nordeste miserável, seco de periferia". Solha estreou no cinema no elenco de O salário da morte (1970), de Linduarte Noronha. No filme, ele está no papel de "dono de metade dos imóveis da rua". Em determinada sequência, figura numa casa grande que ainda preserva, um andar abaixo, uma senzala.

Para Kleber, a relação de estranhamento e conflito entre o homem e a arquitetura urbana, explorada exemplarmente nos anos 1950 por Jaques Tati (Meu Tio, Playtime), tem se intensificado nos últimos tempos. "Quero filmar pessoas numa obra arquitetônica que deu errado. Me incomodam os filmes que isolam os personagens do espaço ao redor". O som ao redor está sendo produzido sob o custo de R$ 1,6 milhão, captados em editais do Ministério da Cultura, Petrobras e Funcultura. As filmagens seguem até o dia 24.

(Diario de Pernambuco, 02/08/2010)

2 comentários:

Unknown disse...

Interessante destacar no cinema os aspectos bizarros do modo de morar da classe média, que hoje são considerados normais e até são almejados pelos que se sentem inseguros dentro da loucura urbana. A "crueldade arquitetônica" está generalizada nas grandes cidades, e, nas cidades do interior, já viraram febre os altos muros com cercas elétricas.

Anônimo disse...

interessante tambem que alguns diretores e filmes pernambucanos tem se dedicado a isso.
bons filmes inclusive!