domingo, 22 de agosto de 2010

História íntima do cangaço



Uma vez derrotados, os cangaceiros deixaram de representar uma ameaça para se tornar o primeiro símbolo nacionalmente reconhecido da cultura nordestina. Pela primeira vez, um livro se dedica estudar essa herança em detalhes. Ricamente ilustrado, Estrelas de couro (Escrituras, 258 páginas, R$ 150) é essencial para entender esse momento singular de nossa história através da arte desenvolvida por valentes - e vaidosos - rebeldes do Sertão. Organizado e escrito por Frederico Pernambucano de Mello, o livro traz imagens e textos que descrevem, contextualizam e analisam a vida íntima de ícones como Lampião e Maria Bonita. Com apresentação de Eduardo Campos e prefácio de Ariano Suassuna, o livro será lançado no Recife na próxima quinta-feira (26), no Museu do Estado (Av. Rui Barbosa, 960 - Graças).

Mergulho na história íntima, do imaginário e das mentalidades que regeram o cangaço, sem as quais, para o autor, não há a verdadeira história, Estrelas de couro traz fotografias (algumas inéditas) e imagens das roupas, acessórios, armas, joias e cartões de visita, estudadas por Mello desde 1997 e obtidas a partir do acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, da Universidade Federal da Bahia e de outras instituições e coleções particulares. Transplantados em desenhos de Antonio Montenegro, os objetos são detalhados em nomes específicos, o que oferece ao leitor um vocabulário inacessível para não-iniciados. Encerra o livro um apêndice com bibliografia detalhada e um sumário traduzido para o inglês por Paulo Henriques Brito, do departamento de letras da PUC-RJ.


Cantil de viagem longa (três litros) de Lampião, 1932. Coleção Pernambucano de Mello. Foto: Valentino Fialdini.


Chapéu de Lampião, 1934. Coleção Pernambucano de Mello. Foto: Valentino Fialdini.

Lançado esta semana na Bienal de São Paulo, a publicação tem despertado o interesse da imprensa escrita e televisiva, que aposta no fascínio provocado pela "moda do cangaço". "Estilistas e fashionistas podem se debruçar sobre essa estética singela mas muito significativa", diz Mello. Ao longo do livro, é possível inclusive acompanhar essa evolução, que em menos de dez anos atingiu o que o historiador chama de "apoteose da estética do cangaço". Para tanto, basta comparar duas fotos, uma do bando de Lampião em 1929 e outra, de um subgrupo em 1938, para perceber a profusão de símbolos nos chapéus e de bordados nas roupas e bornais. Outra foto inédita mostra Corisco quando assume o posto de rei, após a morte de Lampião. "Como na moda dos cavaleiros medievais, a maneira de se vestir dos cangaceiros se tornou tão afetada que isso prejudicou a funcionalidade guerreira".


Subgrupo de Pancada na rendição à volante, 1938. Coleção Pernambucano de Mello.


1939: morto Lampião, Corisco passa a Rei do Cangaço. Cortesia de Sílvio Hermano Bulhões, Santana do Ipanema, Alagoas

Conceitualmente, Mello define o fenômeno do cangaço como uma "tradição rural de resistência popular armada, contínua no tempo e metarracial", baseada no "mito primordial de que no Brasil é possível viver sem lei, nem rei e ser feliz", estabelecido pelo olhar europeu aos índios, negros e demais grupos que promoveram levantes e revoltas. "Os colonizadores, que eram subjugados à coroa portuguesa e ao papado de Roma, caracterizaram o Brasil como o paraíso real", diz o historiador.

Com o lançamento de Estrelas de couro, não se encerra o interesse de Mello pelo universo docangaço. Neste momento, o pesquisador escreve o penúltimo capítulo de seu próximo livro, Benjamin Abrahão: entre anjos e cangaceiros, sobre os anos em que o fotógrafo libanês, o único a filmar Lampião e seu bando, viveu no Brasil. A fonte principal é a caderneta de campo na qual Abrahão descreve, em árabe, as injustiças cometidas por coronéis e volantes no Sertão.

Mello também considera o livro o marco zero para o futuro Museu do Cangaço do Nordeste. "Estou em contato com colecionadores, que pela seriedade de meu trabalho, cederam suas peças. Acredito que o museu deva funcionar em Pernambuco, onde eminentemente o cangaço começou, para depois ser transplantado para a Paraíba e depois para outros estados".

(Diario de Pernambuco, 22/08/2010)

Um comentário:

Anônimo disse...

Já vi a foto de Corisco em resolução maior, em outros sites, e ao compará-la com as que foram tiradas, 3 anos antes por Benjamin Abrahão, fiquei impressionado com o ar envelhecido e abatido de Cristino Gomes da Silva Cleto.

A perda de um grande amigo - no caso, Lampião, que era amicíssimo de Corisco e vice-versa - acaba com qualquer pessoa...