quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A Origem leva espionagem ao mundo dos sonhos



Desde que surgiu, o cinema tem se mostrado território propício para representação de sonhos e desvarios da mente. Seu maior explorador foi Luis Buñuel, que com Salvador Dali inaugurou o surrealismo na sala escura com o curta Um cão andaluz e seguiu nas décadas seguintes com pérolas da incoerência narativa como O anjo exterminador (1962) e A bela da tarde (1967). Em Hollywood, Buñuel deixou herdeiros como David Lynch (Veludo Azul, Twin Peaks), autor de enigmas que as pessoas adoram decifrar. E Michel Gondry, que com Brilho eterno de uma mente sem lembranças provou que um sistema comercial pode produzir filmes e manter a poesia.

Celebrado pela mídia e bilheteria norte-americana, A origem (Inception, EUA, 2010), que estreia amanhã nos cinemas do Brasil, entra nesse terreno com a delicadeza de elefante em loja de cristais. E prova de que Hollywood está tão carente de boas ideias que, quando surge um filme um pouco acima da média e com vestígios de "marca autoral", vira obra-prima.

Claro queo novo Christopher Nolan, responsável por restituir profundidade psicológica à franquia Batman, tem suas qualidades. A maior delas é a sequência de ação orquestrada em cinco derivações simultâneas da realidade. Outra está na exemplar manipulação do tempo - como o filme se passa em sonhos dentro de sonhos, segundos se dilatam em horas.

Em papel um tanto próximo do que fez em Ilha do medo, Leonardo DiCaprio é o astro na pele de Cobb, líder de um grupo de especialistas em adentrar na mente de pessoas poderosas e roubar segredos corporativos. Perdido em culpa pela perda da esposa (Marion Cotillard), ele entra em missão derradeira que o permitirá rever os filhos.

O desafio proposto pelo contratante, Saito (Ken Watanabe), não é acessar informações, mas implantar (daí o "inception") uma ideia no herdeiro de um grande conglomerado (Cillian Murphy) que abriria sua empresa para uma sociedade. Para tanto, Cobb convoca novos parceiros: o mestre em sedativos Yussuf (Dileep Rao) e a estudante de arquitetura Ariadne (Ellen Page), não por acaso, nome da deusa grega que com seu fio salvou Teseu do labirinto. Nela reside a responsabilidade de criar o design dos sonhos, onde ela tem controle total de cenários que se distorcem, explodem ou desmoronam em efeitos que atualizam os da trilogia Matrix. Assim como o questionamento do que é realidade. Algumas imagens ficam, como a sequência em que a cidade projetada por Ariadne se curva até se transformar em calzone gigante.

Além de Watanabe e Murphy, o blockbuster "surrealista" de Nolan conta com Michael Caine, outro ator de sua estima. A seriedade monástica com que trata a ação, outra "marca" de seus filmes, só é superada pelo interesse pelas perturbações mentais de seus personagens. Mas, os sonhos em que eles se posicionam não tem nada de incompreensível. Se há, explicações são esfregadas na nossa cara a cada dez minutos. Outro incômodo está no uso indiscriminado do termo "subconsciente", presente em jargões da cultura popular, mas há muito refutado por Freud, Jung e seus seguidores. Para um filme que se pretende sério, seria bom um pouco mais de prudência.

(Diario de Pernambuco, 05/08/2010)

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