domingo, 28 de março de 2010

O patrimônio é a própria pessoa



Nos últimos anos, políticas públicas estão sendo criadas para apoiar e fortalecer mestres da cultura popular, que aos poucos vêm saindo do limbo do preconceito para ganhar status de patrimônio imaterial. Mas o que torna o mestre um mestre? Qual a sua importância, o seu papel? Durante o 5º Encontro Mestres do Mundo, em Limoreiro do Norte, interior do Ceará, o Diario conversou sobre o assunto com aqueles assim considerados e também para os que neles reconhecem pulsante sabedoria. A maioria diz que começou cedo e aprendeu sozinho, observando os mais velhos. E considera que mestre mesmo está lá em cima.

"É o superior", diz Badia Medeiros, que trouxe a viola mineira para os confins de Goiás, onde ganhou o título de "mestre do Sertão". "Aprendi com a natureza e ouvindo os mestres antigos. Com o próprio esforço, aprendi vários instrumentos e a comandar grupos de dança e cantoria. Nosso país tem tudo de boa qualidade, mas precisa ser descoberto".

Nascido em Assaré, terra do grande Patativa, o sanfoneiro Chico Paes começou a dedilhar os oito baixos com oito anos e nunca mais parou. "Pegava a sanfona do meu pai quando ele ia pra roça. Um dia ele me pegou no flagra e em vez de me repreender, liberou o instrumento. Com dez anos, já tocava em festa, acompanhado dele. Com 13, comecei a tocar só". Após uma vida de dedicação ao "pé de bode" (como a sanfona de oito baixos é conhecida por lá), aos 85 anos, Chico acaba de ser contemplado pela Lei dos Tesouros Vivos, que consiste em R$ 10 mil mais um salário mínimo temporário ou vitalício concedidos pelo governo do Ceará.

O pernambucano Zé do Pife ainda não conseguiu esse "diploma", apesar de ter se formado mestre na Universidade de Brasília, onde trabalha desde os anos 1990. Autodidata, ele começou a soprar as primeiras notas nos sítios de São José do Egito. "Ano passado dei oficina para umas 150 pessoas. Deles, sai 20 ou 30 tocando bem". No Mestres do Mundo, Zé do Pife praticamente não parou de tocar e falar sobre vida e arte. De quebra, fez mais alguns aprendizes, entre eles o garoto Alexandre Sawatani, de Limoeiro. Junto à necessidade de sobrevivência, traduzida numa banca de CDs e instrumentos que ele mesmo faz, Zé do Pife traz um cristalino sentimento de missão a ser cumprida. "Enquanto estiver vivo, seguirei ensinando".

Os irmãos Orlângelo Leal e Ângelo Márcio, da banda Dona Zefinha, acreditam que mestre mesmo não se autointitula como tal. "O mestre se legitima pelo respeito e reconhecimento dos seus. Sempre há oportunistas. Mestres de verdade aprenderam com outro mestre, têm longa atividade e uma autêntica preocupação de cuidar e repassar seu conhecimento", diz Leal. "Ele surge de uma relação de convivência. O mestre é você quem identifica e valoriza, de acordo com seu universo de interesse. Se não, vira mística", diz Márcio.

Para o músico Siba Veloso, mestre é uma palavra de várias facetas. "Na minha escola, ela é usada para ofícios muito específicos, como maracatu, ciranda, cavalo-marinho. Numa concepção mais geral, mestre é a pessoa que passa um saber não de maneira organizada ou racional, mas com a vivência ou convivência que a tradição possibilita".

Mas nenhum conceito parece preocupar os mestres da sabedoria popular. Para Zé Borba, o "homem da mata" de Condado, Zona da Mata Norte, simplifica pela raiz. "Mestre é Jesus. Nós apenas fazemos papel de mestre. Trazemos tradição que vem do berço, para que não se acabe".

(Diario de Pernambuco, 28/03/2010)

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