sexta-feira, 12 de março de 2010
Abismos da memória
Boas atuações - DiCaprio interroga Kingsley; Ruffalo observa
Em Ilha do medo (Shutter island, EUA, 2010), hoje nos cinemas do Brasil, Martin Scorsese exercita seu métier de forma vigorosa e estimulante. Seu contínuo interesse pela cultura norte-americana rendeu obras marcantes em diferentes épocas e grupos sociais.
O foco do novo filme é a loucura e seu processo de construção através de atos de violência, esta última, especialidade de Scorsese. A ação se dá sempre sob o ponto de vista do investigador federal Teddy Daniels, interpretado por um Leonardo Di Caprio menos galã e mais ator, ao lado de atuações não menos notáveis de Ben Kingsley, Max Von Sydow, Mark Rufallo e Elias Koteas.
Daniels traz consigo a perda da esposa e filhos em situação traumática, que desde então o deixou obcecado com uma instituição psiquiátrica para criminosos insanos mantida pelo governo, onde tem certeza que o assassino de sua família está internado. A casa funciona na remota Ilha Shutter, espécie de Asilo Arkham arquitetado com marca pessoal de Scorsese, onde Daniels inicia investigação que desde o início parece estar fadada ao fracasso.
Na procura de uma paciente desaparecida, ele interroga diretores, funcionários e demais pacientes, enquanto nuvens escuras são o aviso de que eventos nefastos estão a caminho. Enquanto cresce a suspeita de que há uma conspiração para que ninguém deixe a ilha, somos capturados pelo filme, de forma irreversível, até o fim.
Após uma dezena de situações suspeitas e a ingestão de psicotrópicos, há o encontro com a fugitiva, momento em que Daniels, cada vez mais perturbado, chega à descoberta de que experiências sistemáticas com seres humanos estariam sendo feitas na Ilha de Shutter, algo equivalentes aos gulags russos e campos de concentração nazistas, lugares que despertam no detetive outro rol de memórias doloridas.
A trama se passa em 1954, auge da perseguição macarthista a "subversivos" de Hollywood, da histeria anticomunista e da paranóia gerada pela bomba atômica. Não é dificil traçar paralelos entre esse contexto eo clima tenebroso potencializado também pela música, capaz de tornar o ambiente e situações ainda mais sufocantes.
Referências cinematográficas vão do expressionismo alemão, filmes noir e muito de Alfred Hitchcock, o que faz de Ilha do medo mais do que um thriller, mas uma magistral viagem pela cinefilia do diretor. O clássico de 1920 O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, foi a primeira das imagens que vieram à tona para Scorsese quando terminou de ler o livro Paciente 67, de Danis Lehane, também autor do sinistro Sobre meninos e lobos, adaptado para as telas por Clint Eastwood.
O protagonista se movimenta sobre a ilha e abismos da memória, que leva a um diálogo entre ele e o diretor do hospício (Von Sydow, fenomenal) sobre sonho (traum, em alemão), traumas e feridas. Da mesma forma, econômicos na revelação de fatos importantes, Lehane / Scorsese conduzem uma história que coloca em dúvida o limite entre sanidade e loucura. Outra suspeita remete ao questionamento da psiquiatria convencional, até entãodividida entre a intervenção cirúrgica (lobotomia) e a famacológica. Scorsese faz parte da geração que defendia antipsiquiatria, que investigava a loucura como construção social. Não é o caso.
Ao contrário do que o título nacional sugere, Ilha do medo não assusta. Seu horror psicológico não causa repulsa, mas fascina. Assim como a porção de terra por ele retratado, é um território a ser habitado. E como todo grande filme, continua depois da sessão.
(Diario de Pernambuco, 12/03/2010)
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Um comentário:
ahh eu quero assistir, o filme parece ótimo! vamos ver qndo vai lançar aki na minha cidade!
PARABÉNS PELO BLOG!
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