sábado, 19 de setembro de 2009

Cotidiano sustentado pelo barro



A partir de hoje, a população de São Domingos, distrito do Brejo da Madre de Deus, verá Dona Eunice, uma de suas mais antigas moradoras, de uma forma diferente.

Aos 70 anos, uma das últimas "loiceiras" da cidade se tornou estrela da exposição Do pó ao barro, produzida pelo estilista Beto Normal, com recursos do edital do Funcultura. Além de jarras, panelas, tigelas e outros utilitários feitos por ela, o local conta com fotografias de Raquel Elis e um ambiente com barro para ser manipulado pelos visitantes.

A abertura será hoje, às 19h, numa casa alugada especialmente para o projeto. Contribui com o apelo lúdico o quebra-panela, antiga brincadeira que consiste em espatifar, de olhos vendados, um recipiente cheio de confeitos pendurado no teto. Os cacos farão parte da exposição. O interior da casa foi pintado de preto, com o objetivo de valorizar imagens que revelam a vida social e religiosa de Dona Eunice, que é devota de Santa Luzia. Completam o ambiente a calçada cor de cerâmica, um oratório que foi de sua avó (com quem ela aprendeu o ofício). Um rádio cenográfico à moda antiga é usado para transmitir a voz gravada da artesã.

Beto resume o resultado como uma experiência "tátil, visual e auditiva", voltada para a preservação da memória. Memória afetiva para Beto, nascido em Pão de Açúcar, distrito de Taquaritinga do Norte. E memória social do interior pernambucano, que tem passado por mudanças radicais na esteira da tecnologia. "Quando criança, me lembro de ver várias mulheres como ela na feira de Santa Cruz do Capibaribe. Há dois anos, voltei à feira e só vi Dona Eunice", conta Beto. "Antigamente, eram mais de 200 mulheres que trabalhavam nisso, só no Vale do Capibaribe".

Há várias décadas Dona Eunice sustenta sua família dando formas ao barro, ofício conhecido popularmente como "loiceira". "Ela não faz objetos de decoração. É tudo utilitário. Ela nem assina. É um trabalho que vem de uma tradição de 200 anos nessa comunidade de São Domingos", diz Beto. Assim, DonaEunice criou sete filhos, que hoje se interessam mais pela sulanca, onde trabalham com máquinas overloque. "Quando ela morrer, o ofício também vai desaparecer. Por isso, quero alunos do ensino médio e fundamental visitem a exposição e identificar o barro como algo atual".

Em São Domingos, a exposição permanece até 2 de outubro, na casa de número 286, na rua principal. Depois, ela segue para Pão de Açúcar, Lajedo e Arcoverde. Beto diz que pretende submeter a itinerância a novo edital, para percorrer mais cidades do interior que não contam com galeria de exposição.

"Talvez também a capital, mas a prioridade é circular em lugares sem aparelhos culturais que permitam esse tipo de estímulo estético. No interior tem igreja, festa de padroeira e lan house, mas não tem cinema nem teatro que ofereçam um olhar mais particular para uma compreensão da própria realidade", defende Beto, que espera contribuir para ressignificar a figura da loiceira. Quem sabe agora, vendo a avó retratada de outra maneira, os herdeiros olhem de forma diferente essa figura que todo mundo conhece, mas nem sempre valoriza.

(Diario de Pernambuco, 19/09/09)

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