domingo, 27 de junho de 2010

Noronha quer seu Cinema Paradiso



Sessões de cinema numa ilha a 550 quilômetros do continente podem parecer algo um tanto improvável. No entanto, foi o que houve por mais de meio século em Fernando de Noronha, quando, no período em que o arquipélago era administrado pelas Forças Armadas, a cultura cinéfila estava em alta. Nos últimos meses, projetos de exibição de filmes tentaram recuperar essa tradição - boas iniciativas para um local em que as poucas opções culturais geram neuronha, sensação de confinamento comum aos que permanecem na Ilha mais do que uma temporada. É um desafio, considerando que o hábito de assistir a filmes está adormecido.

Inaugurado em maio passado, o Cine Mabuya é filiado à rede Cine + Cultura (do MinC), que investiu R$ 15 mil em capacitação e equipamento (projetor digital, tela 2,43 x 1,82, reprodutor de DVD, duas caixas de som + subwoofer, amplificadores, mesa de som e microfone. O projeto funciona no Clube das Mães (Vila dos Remédios), espaço multiuso que já foi creche e hojeabriga festas, reuniões e atividades afins. Semanalmente, a estrutura precisa ser montada e desmontada. A plateia é recebida em 60 cadeiras de plástico. Na noite de sexta-feira, quando a reportagem do Diario esteve presente, menos de dez pessoas foram assistir à exibição de Bicho de sete cabeças, de Laís Bodansky.

Mabuya é um réptil malemolente e originário da África. Como as bandeiras dos cartões de crédito, pode ser visto em praticamente todos os cantos da Ilha. O Cine, que parte da imprensa reproduziu afoitamente como "o primeiro cinema de Fernando de Noronha" é resultado do esforço do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan/MinC), da administração distrital e do governo de Pernambuco de levar cinema ao arquipélago. De acordo com a turismóloga Manuela Fay, coordenadora do Mabuya, a escolha dos filmes passa pelo voto de estudantes da única escola pública da ilha, a partir das sinopses e dos trailers. A divulgação é feita com cartazes e chamadas em rádio e TV. "Inicialmente nossa parceriaé com a escola. Num segundo momento, vamos nos articular com as associações de taxistas e guias".



Durante a sessão de Bicho de sete cabeças, cerca de 20 pessoas do grupo de capoeira local apareceram para a tradicional roda das sextas-feiras. Não sabiam que o Clube das Mães estaria ocupado por outra atividade. Enquanto o filme era exibido, uma pequena discussão se formou na porta do espaço usado pelos capoeiristas desde que perderam a sala onde funcionará a farmácia do Lafepe. "Adoraria ir ao Cine Mabuya, desde que avisassem antes, para não atrapalhar a minha capoeira", disse uma integrante do grupo, que não quis se identificar. Após o incidente, os organizadores do Mabuya decidiram que as sessões seriam aos domingos. A sessão da sexta foi um teste, já que aos domingos a missa estaria roubando o público do cinema.

Aos sábados já existe outro projeto de exibição de filmes, o Cineclube Noronha, mantido pela Associação dos Artistas e Artesãos, e que tem funcionado no auditório da escola. Foi fundado em novembro, época em que foi contemplado pelo Edital do Audiovisual da Fundarpe. No sábado, Dia dos Namorados, o filme em cartaz foi Se eu fosse você 2, de Daniel Filho. A plateia, com exceção deste repórter e três visitantes, se resumiu a quatro integrantes do cineclube. De acordo com o professor Rafael Marinho, presidente do cineclube, o maior público foi para o filme A mulher invisível: 34 pessoas.

Ponta do iceberg - A notória ausência de público nos cineclubes de Fernando de Noronha passa pela histórica - e por vezes intempestiva - falta de sintonia entre moradores e a administração de Ilha, que desde 1988 foi reanexada a Pernambuco. Nesse contexto, sessões esvaziadas são o menor dos problemas. No paraíso dos turistas, moradores reclamam de precariedade na saúde, educação, infra-estrutura, patrimônio e gestão do meio-ambiente.

A nativa Marilda Martins da Costa diz que, para um projeto de exibição de filmes engrenar em Noronha, é preciso uma sala escura própria para a atividade. "O atrativo do cinema é o ambientefechado e o filme em película. Você acha que vou sair de casa pra ver DVD?".

O que talvez Marilda não saiba é que há planos do Iphan e do governo do estado para que o antigo Cassino dos Oficiais, conhecido como Clube do Pico, se transforme em cinema. "No futuro, pensamos transferir o Mabuya para lá", adianta Manuela Fay. As poltronas já estão a caminho. São uma doação do grupo Severiano Ribeiro à Associação de Artesãos, que ficará com 25 e cederá as restantes ao Mabuya.

Saudade dos tempos áureos


Crédito: Acervo do Programa de Resgate Documental de Fernando de Noronha

A história do cinema em Fernando de Noronha remonta à Segunda Guerra Mundial, quando militares promoviam sessões no chafariz que havia em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. No começo dos anos 1950 foi aberta a primeira sala, o Cine Rio Branco, que se manteve por pouco tempo. Em 1957, o clube dos oficiais também exibia filmes, com acesso restrito a amigos e funcionários do Exército. Até que surgiu o Cine Teatro Independência, que comportava até 50 pessoas e atendeu ao público noronhense até 1985, sob administração das forças armadas.



Ana Martins da Costa, a Dona Ananete, chegou na Ilha em 1947 e se lembra das sessões do Rio Branco, o qual frequentava. "A gente sentava em tábuas de madeira, como na igreja. Dava pra mais de cem pessoas. Quem operava o projetor era Edgar Cobrinha, que hoje mora no Recife. Não esqueço dos filmes que passavam lá: Marcados pela sarjeta, Sete homens e um destino, Trinity, Marcelino Pão e Vinho", diz Dona Ananete, que hoje assiste seus clássicos em DVD, no conforto do lar.


Crédito: Acervo do Programa de Resgate Documental de Fernando de Noronha

Um dos projecionistas do Cine Independência, Manuel Pereira da Silva, vulgo Bolinha, conta que o cinema contava com cadeiras acolchoadas, tapete vermelho e equipamento capaz de exibir em 16mm e cinemascope 35mm. "A cada 15 dias o avião trazia filmes recentes, enviados do Recife pela distribuidora ArteFilme, que ficava na Av. Rio Branco. Uma parte do dinheiro do ingresso ia para os operadores, outra para o bilheteiro e outra para o rapaz que enrolava as fitas com manivela".


Em 1966, público aguarda início da sessão no Cine Independência
Crédito: Acervo do Centro de Pesquisa Histórica e Cultural de Fernando de Noronha

O Cine Indepenência viveu tempos áureos. "Era o único divertimento que tinha aqui na Ilha", diz o morador Ivanildo Ferreira, que se lembra de frequentadores incomuns, como falecido Antônio Boca Rica, que ria tão alto a ponto de ser expulso da sala.


Manuel Pereira da Silva, o "Seu" Bolinha

Seu Bolinha lembra que certa vez, em 1982, a exibição de E o vento levou... foi um fracasso de bilheteria. Assim, como vários cinemas brasileiros, os últimos anos do Independência foram marcados pela combinação de filmes de sexo e violência, como Desejo de matar e Garganta profunda. "Sugeri ao administrador: se o senhor trouxer um filme de sexo muito bom, o povo vem". Apenas na primeira noite, foram necessárias três sessões para dar conta do público, ávido pelo longa Coisas eróticas.

Em 1985, após o roubo de peças facilitado por falhas de segurança, o Independência fechou as portas. Um ano após a reanexação por Pernambuco, ele foi repassado a uma família que abriu uma loja de materiais de construção. "Foi Pernambuco quem acabou com o cinema. Foram eles quem levaram o telão que os norte-americanos deram pra gente", diz Dona Ananete.

Mestre em história social pela UFPE, a pesquisadora noronhense Grazielle Rodrigues do Nascimento diz que a reanexação não foi bem vista pelos olhos da população. "O estado se impôs com força, sem nenhum trabalho de aproximação com a comunidade. O efeito foi arrasador. Culturalmente, os nativos não se reconhecem como pernambucanos".

Para Grazielle, a perspectiva da reinauguração do cinema no Clube do Pico é animadora. "Nós perdemos o hábito de ir ao cinema", diz. "Algum tempo atrás, o projeto Tamar tentou exibir filmes antes das palestras, mas platéia ficava vazia. É preciso reacender o gosto de ir ao cinema, da mesma forma que se vai a qualquer outro evento".

(Diario de Pernambuco, 27/06/2010)

Um comentário:

Adriana Guarda disse...

Por que as notícias sobre quadrinhos escassearam? O Quadro Mágico fica bem mais instigante com elas. Volta a postar!