segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Festival de Brasilia // Curtas de Pernambuco são favoritos


Cena de Recife frio, de Kleber Mendonça Filho

Brasília (DF) - Com a exibição de Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante e Recife frio, de Kleber Mendonça Filho, o Festival de Brasília mais uma vez se confirma como reduto do cinema pernambucano. Ambas as produções foram bem recebidas por crítica e público durante o fim de semana. O último, exibido na noite de sábado, foi motivo de longa ovação, com direito a urros do tipo "dá-lhe Recife!", o que o coloca como franco favorito ao Candango de melhor curta-metragem. A programação encerrou com o longa O homem mau dorme bem, de Geraldo Morais, onde Luis Carlos Vasconcelos interpreta um romântico vítima da miséria humana, que busca vingança para dormir o sono dos justos.

Assim que for exibido no Recife, o curta de Kleber vai dar o que falar. Com humor ácido (o grupo inglês Monty Python é referência explícita) e vingativo, Recife frio coloca a capital pernambucana como cenário de uma ficção distópica, onde convenções sociais, culturais e arquitetônicas são levadas ao limite. No caso, é criada uma realidade paralela onde uma reviravolta climática faz a temperatura da capital pernambucana oscilar entre 5 e 10ºC. Mendigos morrem congelados; pinguins invadem as praias; pessoas se trancam em shopping centers. Em falso documentário televisivo, um repórter mostra um vendedor de artesanato (Junior Black) explicando a mudança nas casinhas de madeira de Olinda, que agora têm chaminé. Há inversões sociais, como a evasão de novos-ricos dos apartamentos na beira-mar de Boa Viagem e a migração de filhinhos de papai para o quarto da empregada (que agora dorme numa suíte espaçosa e gelada) e uma visão petrificante das pontes sobre o Capibaribe, descrito como uma "calda escura que um dia foi um rio".

A irreverência corrosiva transborda para o próprio filme, híbrido de ficção-científica, documentário, comédia e videoclipe. Este último foi a linguagem utilizada para o nobre tratamento dado a Lia de Itamaracá, que anima uma ciranda movida a gorros e cachecóis. A grandeza de Lia nunca esteve tão bem representada quanto aqui. É o momento em que o filme transcende para algo quase sobrenatural. Depois de tanta iconoclastia, um momento de afirmação do que há de bom em nossa cultura. De quebra, prova cabal de que é possível representar a cultura popular sem recorrer a meia dúzia de clichês.

Busca semelhante de Ave Maria ou mãe dos sertanejos, exibido na noite de sexta-feira. Na tela grande, o apelo visual de ganha força e grava na retina um Sertão belo e melancólico, construído em tons de azul, verde e dourado (de sol e luz de velas). Assim como Lia, a voz de Luiz Gonzaga foi aplaudida pela plateia. Camilo Cavalcante afirma que o filme é o Sertão "de dentro pra fora", já que contou com um grupo de moradores de Serrita na produção, em que a câmera parece assumir o ponto de vista da própria Virgem Maria, que no fim do dia direciona seu olhar piedoso para os sertanejos. De acordo com o diretor, não há viés religioso no projeto. "O fim do dia é um momento reflexivo, em que as pessoas buscam a redenção, algo que as sustente e dê força para seguir adiante".

Exibido logo depois, Quebradeiras, novo longa de Evaldo Mocarzel, dialoga diretamente com o filme de Camilo. Os dois prescindem da palavra (sem diálogos ou depoimentos) em prol do rigor estético (visual e sonoro, que realça o som do ambiente) e recursos de ficção. Dedicado aos representantes do "documentário mineiro contemporâneo": Cao Guimarães, Helvécio Marins, Pablo Lobato e Marília Rocha, Quebradeiras mostra o cotidiano de mulheres que trabalham em plantações de babaçu na região do Bico do Papagaio, entre os estados do Maranhão, Tocantins e Pará. Uma realidade quase ancestral, fotografada pela lente precisa do veterano Gustavo Hadba. "Durante nove filmes persegui a imponderabilidade do real. Para fazer este, criei alguns dogmas: aboli entrevistas; não há câmera na mão e todos os planos foram pensados antes de rodar; e pela primeira vez trabalhei com trilha sonora", disse o diretor, antes da sessão começar.

Após décadas de jornalismo (foi editor do Caderno 2 do Estado de São Paulo) Mocarzel já dava pistas da mudança de estilo em À margem do lixo (exibido em Brasília no ano passado), onde constroi pequenas vinhetas "sensoriais" para representar o processo de reciclagem industrial. Formato mais do que interessante, vindo de alguém que, mesmo depois de migrar para a linguagem do cinema, continuou se expressando através da palavra. Talvez por se tratar da primeira experiência, a ideia torna-se cansativa quando estendida para 85 minutos de projeção. O que torna Quebradeiras uma pedra bruta a ser lapidada. A conferir.

Na noite de hoje, a última da mostra competitiva, haverá a estreia de dois novos curtas pernambucanos: Azul, de Eric Laurence e Faço de mim o que quero, de Sérgio Oliveira e Petrônio Lorena.

(Diario de Pernambuco, 23/11/2009), com alterações e acréscimos.

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