segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
Memória esquecida do cinema
Muito se fala sobre a pujança do cinema pernambucano, mas pouco tem sido feito pela preservação de sua memória. A situação é crônica, a ponto de não haver uma fonte que centralize e facilite o acesso até mesmo à produção mais recente, como a dos últimos dez anos. Quanto mais a do século passado. No entanto, articulações recentes apontam para uma possível cinemateca nordestina, a ser sediada no Recife. A nova instituição seria mantida em parceria inédita com a Cinemateca Brasileira, e além de outros estados, reuniria os acervos da Fundação Joaquim Nabuco, do governo do estado e da Prefeitura do Recife.
“Progredimos anos-luz no audiovisual, mas a memória ainda é uma grande lacuna”, reconhece Carla Francine, coordenadora de cinema da secretaria estadual de Cultura, que visualiza o Cinema São Luiz como possível sede para o acervo coletivo. Como o projeto é embrionário (começou a ser discutido no fim de 2011), pouco se fala a respeito. De acordo com Carla, a fundação de uma cinemateca regional abre a possibilidade de a Cinemateca Brasileira inaugurar um escritório em Pernambuco.
O pool para preservação inclui a mitológica Cinemateca Alberto Cavalcanti, fundada pela prefeitura nos anos 1970, para ser fechada na gestão seguinte. “Além de ter criado a filmoteca, o então prefeito Augusto Lucena criou por decreto a Escola de Cinema do Recife. Depois veio Antonio Farias e nomeou Ariano Suassuna para a pasta da Cultura, que botou pá de cal”, lembra o escritor e cineasta Fernando Monteiro. “Fui muito amigo de Alberto, que tinha ligação forte com o Recife. Quando soube da homenagem, ficou contente e veio de Paris para a inauguração. Foi um momento vexatório, pois depois disso ela deixou de existir”.
Além de O canto do mar (1954), de Cavalcanti, o acervo municipal conta com filmes como O palavrão, de Cleto Mergulhão (1978), Chegada do Jahú no Recife (1927), Visão apocalíptica do radinho de pilha (1972) e Filme de percussão mercado adentro (1984), os dois últimos, de Monteiro. Para saber sobre as condições e planos para o acervo, a reportagem do Diario procurou a gerência de audiovisual da prefeitura, mas não obteve resposta. Enquanto isso, os rolos de película avinagram em um dos camarins do Teatro do Parque, fechado desde setembro de 2010.
Notório colecionador e membro da Associação Brasileira de Preservação do Audiovisual, Lula Cardoso Ayres Filho diz que o projeto operativo do São Luiz, feito por ele em setembro de 2008, já previa a criação de uma cinemateca. E que prefere que seu acervo, um dos maiores do país, continue sob seus cuidados, “mas sempre à disposição de pesquisadores. Não tenho esperança no poder público. O governo Eduardo Campos dá grande apoio para o audiovisual, mas quem garante que com a mudança de gestão isso continue? Por isso, políticas precisam ser instituídas. A memória cultural não pode depender de prestígios e empenhos pessoais”.
Fernando Monteiro atenta para o fato de que, sem pressão do público, produtores de cinema inclusive, a memória continuará empoeirada. “Dá impressão de que os cineastas querem apenas realizar os filmes, aparecer em jornais e festivais. Não se interessam pelo destino dos filmes”.
Prédio do Mispe interditado desde 2005 - Localizado na Rua da Aurora, na Boa Vista, o Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mipse) há muitos anos aguarda a restauração e modernização de sua sede, interditada em 2005. Enquanto isso, seu acervo está à disposição em horários restritos, na Casa da Cultura, bairro de Santo Antonio. “Aquele prédio não era para estar fechado”, lamenta Celso Marconi, que dirigiu o Museu da Imagem e do Som de Pernambuco entre 1991 e 2003. “O Mispe funcionava com problemas, mas pelo menos tinha atividades. Museu tem que ter continuidade”.
O acervo do Mispe, formado por seis mil peças, conta 170 filmes em película, a maioria de 16mm, todos relegados a uma das “jaulas” da Casa da Cultura. “Não é uma situação nem perto da ideal, pois não é o ambiente correto, mas nada está em risco”, garante Geraldo Pinho, o atual gestor.
A boa notícia é que a recuperação estrutural do Mispe, orçada em R$ 600 mil, deve começar em fevereiro. A previsão é de Célio Pontes, diretor de gestão de equipamentos culturais da Secretaria de Cultura. “A primeira etapa está licitada, vamos expedir a ordem de serviço e a entrega será 150 dias após o início da obra”. A segunda etapa, informa Célio, é a adequação arquitetônica do espaço, que contará com laboratório, sala de exibição e exposição. O projeto, que conta com normas de acessibilidade, levou dois anos para ser definido. “Será um museu moderno, com perfil dinâmico e maior oferta de serviços, como exposições, exibição de filmes e a volta das entrevistas com personalidades da cultura, que estão na origem do museu”.
Antes mesmo de ficar pronto, diz Célio, o Mispe iniciará algumas atividades no Cinema São Luiz, como exposições e mostras especiais. “Precisamos manter o Mispe vivo na memória da população. Para quando abrir, não demorar a se reintegrar na agenda cultural da cidade”.
Primeiras peças de um acervo nordestino - Das instituições que protegem a memória do audiovisual em Pernambuco, a Fundação Joaquim Nabuco é a que tem apresentado o trabalho mais consistente. Foi através dela que títulos importantes do Ciclo do Recife foram restaurados pela Cinemateca Brasileira. Em parceria com o governo do estado, a ideia é mapear outros filmes, primeiro em Pernambuco, depois da região e com isso formar um museu do cinema nordestino contemporâneo.
Nesse sentido, a mais recente ação da Fundaj é exemplar: a compra do acervo de Fernando Spencer, realizada há três semanas. Aos 85 anos, o pioneiro do cinema 16mm já não tinha condições de manter a coleção, que precisa de climatização e desumidificadores para não se estragar. “Perdi muitos filmes assim, viraram pó”. Entre os itens adquiridos estão 18 filmes de Spencer, cartazes, 47 volumes de revistas de cinema, trilha sonora de filmes brasileiros e 64 livros sobre cinema.
“A preservação da memória do país ainda é incipiente, um potencial não valorizado, importante inclusive para a criação”, diz Silvana Meireles, diretora de Cultura da Fundaj. Ela diz que, apesar de contar com um dos maiores e mais bem conservados acervos do país, é preciso reunir a produção mais recente, dos anos 1970 para cá. “Hoje nos deparamos com filmes de dez anos atrás que não têm cópia para o cinema”.
O convênio entre a Cinematca - Fundaj - Estado, diz Silvana, tem perspectiva de ser assinado em março. A ideia é criar um acervo único. “A cópia de preservação ficaria na Cinemateca Brasileira, uma cópia para pesquisa na Fundaj e outra cópia específica para difusão”. No entanto, as dificuldades com a conservação ainda precisam ser superadas. “Guardamos alguns acervos, mas nossas acomodações precisam de reforma e ampliação”.
(Diario de Pernambuco, 15/01/2012)
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