quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A força da música



Não é fácil chegar ao simples. Para Eduardo Coutinho, 78 anos, ele vem na forma de um cinema decantado ao longo de décadas. Moscou (2008), desafio auto-imposto de “não-direção”, levantou suspeitas de uma possível nova fase. Em seu 12º longa, As canções, ele retorna ao método que o consagrou: a entrevista. Após sessão disputada no fim do ano passado, o filme abre com chave de ouro a programação do Cinema da Fundação, onde estreia amanhã.

Como o título já revela, As canções é um documentário musical. Não como os que estão em voga, sobre determinada época ou compositor. Mas sobre pessoas e a força que a música imprime em suas vidas. Todos têm ao menos uma, vinculada a alguém ou algum sentimento. Diferente de Edifício Master (2002) e O fim e o princípio (2006), em que as conversas se dão no local onde vivem os personagens, o cenário escolhido para a filmagem de As canções é uma espécie de confessionário, onde a redução de elementos chega ao mínimo possível. Das cortinas pretas, ao fundo, surge o entrevistado, que se senta na cadeira em frente à câmera. Ao lado da lente está Coutinho, para quem 18 pessoas se dirigem. Falam, riem, choram. Depositam os mais nobres sentimentos.

Mas se uma definição clássica para cinema é ação (movimento, moving pictures = movie), onde estará o cinema de Coutinho, que primam pela ausência de movimento físico? Em entrevista ao Diario, o próprio responde. “Desde Santo forte (2002) resolvi voltar a fazer cinema com a premissa de que uma pessoa que fala pode ser tão maravilhosa quanto o Titanic. Se a fala é uma performance, adquire caráter de ação”.

Dependendo do talento vocal, a montagem privilegia ou a história contada ou a cantada. Todas são de amor. São 17 pessoas, que entre outros, cantam Vinicius de Moraes, Carlos Lyra, Jorge Ben, Chico Buarque e Tom Jobim. Roberto Carlos, o rei dos românticos, não poderia faltar. Enquanto cantam, sentimentos jorram, momentos em que revelam a força e a beleza das nossas canções.

Todos os depoimentos emocionam, inclusive o do rapaz que canta e chora para a mãe, lembrando da infância. Há os que confessam exageros e até crimes em nome do amor. A melhor surpresa, o próprio Coutinho concorda, é a do agricultor, hoje feirante, que sofreu com a morte da mulher. Ele foi ao estúdio por curiosidade, não quis cantar no teste. “Como você manda uma mulher que morreu ficar longe de você?”, perguntou Coutinho. E ele cantou a música que compôs para ela. Emoções jorram. Coutinho e sua extraordinária câmera-divã.

Entrevista // Eduardo Coutinho: “A canção sempre vai existir”

O que te motivou a realizar o novo filme?
Primeiro, uma discussão que Chico Buarque levantou quando disse que a canção iria morrer. Para mim, essa questão é falsa. A canção está nos primórdios da humanidade e sempre vai existir, enquanto a voz humana existir. A forma de consumi-la pode mudar, as pessoas vão continuar a chorar, agora pela internet. Segundo, não quis fazer um filme com as canções que eu gosto, como faz a maioria dos documentários musicais.

Eles são todos iguais, não acha?
Alguns são péssimos, mas terminam sendo salvos pelo objeto. O que eu quis fazer não tem nada a ver com isso. Não procurei grandes cantores ou músicas pelo valor estético. As músicas estão lá independente do meu gosto.

E são um atestado da riqueza do cancioneiro brasileiro.
O filme não quer provar isso, mas é. Acho que depois da norte-americana está a música brasileira, depois a do Caribe. Elas foram formadas na diáspora, uma mistura que não existe no leste.

Como chegou aos entrevistados?
Pelo velho processo de adequação. Não quis músicos profissionais, com a intenção de se promover, mas pessoas cuja memória fosse ajudada pela música. Tanto que o personagem que mais me interessa no filme, um feirante de Ipanema, jamais irá a um Big Brother. Me interessa gente como ele, que revive e reinventa o passado, que para mim é mais verdadeiro do que o vivido. No processo, o afeto foi uma questão essencial.

Ninguém quis cantar Raul?
Pensei que iria encontrar duzentos Raul Seixas e não teve nenhum. Fiquei surpreso ao encontrar três pessoas cantando Legião Urbana, que são músicas difíceis de cantar, mas não entraram no filme por razões técnicas.

A música sempre está presente em seus filmes.
Desde Santa Marta (1987), que tem dez músicas. Depois, fiz Boca do lixo (1993), que um entrevistado canta uma música de José Augusto. Gosto de gente que canta a capella, que não é cantor mas tem motivo para cantar.

O que te move a dirigir um novo projeto?
Procuro um filme que eu faça não porque tenho, mas porque quero fazer. Penso em um sobre o dicionário, que tem todo o mundo dentro dele. Usar o esquema de esquetes e entrevistas, criar uma lógica para a leitura de verbetes, fazer alguma loucura em cima disso. Por que as pessoas dizem palavrão? Acho isso fascinante. O problema é que isso envolveria atores, direção de arte e questões de direito autoral, o que eleva os custos.

(Diario de Pernambuco, 05/01/2012)

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