terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A História em quadrinhos*



Para os brasileiros, durante décadas, histórias em quadrinhos foram pouco mais do que um passatempo pueril. Com o tempo, e certo esforço das editoras, esse reducionismo provocado pela indústria dos comics norte-americanos foi sendo quebrado. Hoje, o mercado de HQs oferece bem mais do que super-herois, camundongos e outros bichos. Ele reflete uma produção mundial, que utiliza a linguagem peculiar dos quadrinhos para tratar de temas densos e nada engraçados, como a bomba de Hiroshima e o holocausto, apenas para citar dois grandes marcos: Gen, de Keiji Nakazawa, e Maus, de Art Spiegelman.

Após sua publicação, nos anos 1970, os quadrinhos históricos ganharam relevância não somente pelo compromisso social de relembrar fatos importantes do passado, mas pela evidente criatividade de seus melhores autores. De tempos em tempos, há uma onda de boas publicações do gênero, e estamos passando por uma delas. Recentemente, dois bons exemplares vieram à tona, calcados em fatos históricos que marcaram a América Latina no século passado. O primeiro é Chibata! - João Cândido e a Revolta que Abalou o Brasil, da dupla cearense Hemetério e Olinto Gadelha. O segundo é Che – os últimos dias de um herói, obra argentina produzida 40 anos atrás, logo após a morte do líder revolucionário.

Listado no index da ditadura argentina, a versão nacional para Che chegou somente mês passado, e preenche uma lacuna na bibliografia nacional. A HQ, criada por Hector Oesterheld e Alberto Breccia, é considerada uma obra prima não somente pelo caráter político-histórico, mas por narrar a trajetória do personagem com maestria no uso das técnicas de claro-escuro. Além disso, o próprio livro entrou pra história, ao vencer a cruel ditadura argentina. No entanto, o roteirista Oesterheld e todas as suas filhas foram presos, torturados e assassinados pelo regime dos generais. Ao longo do tempo, a dupla tem sido adotada como referência básica por gigantes como Hugo Pratt (criador da série Corto Maltese) e Frank Miller.

Os dois títulos foram lançados pela editora paulista Conrad Livros. “Durante mais de 50 anos, os quadrinhos foi a arte mais censurada do Ocidente. Como eram considerados uma coisa de criança, só se aceitava que tratasse de temas que os adultos julgassem adequados às crianças. Ainda hoje, qualquer quadrinho que trate de temas mais complexos que guerras intergaláticas ou brigas de patos são obrigados a trazer o aviso: ‘quadrinhos adultos’, mesmo que não tenham cenas de sexo ou excesso de violência”, diz Rogério de Campos, diretor da Conrad, que ostenta em seu catálogo outros capítulos da história mundial, como os conflitos no Oriente Médio e leste europeu narrados pelo jornalista gráfico Joe Sacco.

“Creio que os quadrinhos estão vivendo seu momento de libertação. A queda das vendas dos gibis de super-heróis e os outros gêneros tradicionais abriam espaço para outros tipos de quadrinhos. Veio também abaixo aquele muro de preconceito e ignorância que impedia muita gente de perceber que os quadrinhos são uma linguagem artística como outra qualquer, com os mesmos direitos e deveres”, reflete Campos.

Ele conta que a ideia de quadrinizar a Revolta da Chibata, episódio propositadamente obscurescido pela historiografia brasileira, partiu da própria editora. “Nos agrada pensar que Chibata! surgiu em parte como resultado desse trabalho da Conrad de mostrar que quadrinhos podem falar de qualquer tema”, provoca o editor. A aposta deu certo: o projeto é considerado pela crítica especializada uma das melhores HQs de 2008.

Parte do mérito veio da confiança depositada nos artistas convocados para a missão. “A Conrad foi corajosa, ao confiar nos nossos instintos e nos deixando em paz para trabalhar”, conta Hemetério, que desenhou as 244 páginas do livro. “A história brasileira é rica em fatos, mas pobremente documentada. E quando tudo vem à tona, sempre passa um quê de ranço oficial. Quanto mais houver pesquisas e questionamentos, mais os fatos poderão ser analisados à luz da crítica. Os quadrinhos nacionais podem ter um papel relevante nessa divulgação, desde que sejam divertidos e criativos, por exemplo, ao dar voz a quem a história oficial tentou calar, ou mostrar as coisas por outro ângulo”, pensa o artista.

Para ter acesso a informações sobre o levante liderado por João Cândido, o “almirante negro”, o roteirista Olinto Gadelha desenvolveu um cuidadoso trabalho de pesquisa, que se valeu de bibliotecas tradicionais à internet, que para ele foi ótima fonte iconográfica. “Um dos motivos que me atraíram foi o fato de que o público pouco sabe sobre o tema. A visão escolar é muito resumida, e isso simplifica a importância dos eventos de 1910. Por ter sido uma insurreição contra uma forte instituição nacional, e ressaltado o que havia de pior nas relações sociais e raciais da nossa sociedade, o tema sempre foi tratado com reserva. Nestes 98 anos desde os fatos, muitos que ousaram se pronunciar sobre os eventos foram perseguidos e censurados”, afirma Gadelha.

Para o desenhista, o sucesso das HQ sobre temas históricos está na busca dos leitores por melhores exemplos. “Nos faltam heróis. A história do nosso povo é cheia de distorções, ídolos fajutos, feitos atribuídos a quem teve pouca ou nenhuma relação com os mesmos, e muita gente heróica como João Cândido é deixada no esquecimento porque seus atos ou origens iam de contra-mão à norma estabelecida”.

Outro nome que tem se destacado no ofício das adaptações da história para os quadrinhos é o ilustrador, cartunista e quadrinista João Spacca de Oliveira. Nos últimos anos, ele produziu Santô e os pais da aviação, Debret - Viagem quadrinhesca ao Brasil e D. João Carioca, todos pela Companhia das Letras. “Tenho a impressão de que a HQ precisa desses e outros referenciais para ser melhor aceita. Tradicionalmente ela é fruto da indústria cultural, ou seja, é entretenimento descartável. Mas como nos filmes B de Hollywood, surgiram autores que se destacaram e conseguiram fazer evoluir essa linguagem ao estado da arte”, avalia Spacca.

Em meio a efemeridade da imprensa escrita, há que destacar a linha editorial do Diario de Pernambuco, que usa dos quadrinhos para aproximar os leitores dos fatos históricos recentes, como na premiada série sobre Lampião e o cangaço, com texto do jornalista Paulo Goethe e arte de Greg Holanda.

Neste processo em comum a todos os casos aqui descritos, a atualização de um passado “oficial” a partir do olhar de cada autor, os quadrinhos extrapolam a condição de objeto de entretenimento para assumir uma das funções sociais da arte: estimular o pensamento - e por que não? – a ação.

* publicado na revista Continente nº 98 - fevereiro/2009

2 comentários:

Anônimo disse...

Só lamento que, neste momento, meu salário esteja em um período de baixa e eu não possa comprar muito poucos dos lançamentos que estão saindo agora. Se ao menos as bibliotecas pudessem suprir essa carência...

Anônimo disse...

Desculpe: cometi um erro no meu comentário anterior. O que eu quis dizer foi que lamento que SÓ possa comprar muito poucos dos lançamentos atuais por questões financeiras.


Mas será que existe algum programa de compra de HQs nas bibliotecas?