sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
Estreia // Quem quer ser um milionário?
A emblemática vitória de Quem quer ser um milionário?(Slumdog millionaire, Inglaterra, 2009) na cerimônia de entrega do Oscar, na noite do último domingo, levanta questões que transcendem os méritos do novo filme de Danny Boyle. Questões ligadas à própria sobrevivência da indústria, em recessão antes mesmo da insurgência de uma crise econômica que certamente fragilizou ainda mais as crenças de Hollywood num cinema "americano feito para americanos".
Sinal dos tempos, uma produção inglesa, dirigida por um escocês revelado pelo circuito independente da década passada, estrelado e parcialmente falado em língua estrangeira, pode ser tábua de salvação de um dos mais caros artífices do império americano: a indústria dos bens simbólicos. No Recife, o filme segue em regime de pré-estreia pela segunda semana, em sessões que devem continuar disputadas a tapa até 6 de março, quando entra em cartaz em mais salas e horários.
É bom contextualizar que, apesar das referências adotadas por Slumdog, o filme está longe de simular um produto made in Bollywood, cujas regras incluem a paródia a Hollywood, cenas musicais, muita riqueza e paisagens exuberantes. E a exuberância mais presente no filme de Boyle pode ser resumida em cenas de crianças órfãs chafurdando em lixo e sendo torturadas fisicamente.
Até o Taj Mahal, suntuoso ícone histórico é desvirtuado como promissor foco de assalto a turistas americanos. Por tudo isso, apesar da sessão de estreia de Slumdog em Mumbai ter contado com mais de uma centena de personalidades de Bollywood, o filme irritou profundamente o povo indiano.
Inspirado no livro de ficção Q & A, (no Brasil, Sua resposta vale um bilhão, publicado pela Companhia das Letras), do diplomata indiano Vikas Swarup, o filme conta a história de Jamal Malick (Dev Patel, atualmente trabalhando em The last airbender, de M. Night Shyamalan), jovem proveniente de uma periferia miserável de Mumbai. A trama se dá em três diferentes momentos de sua vida, que se intercalamno filme e explicam aos poucos como ele, um "slumdog" (favelado, literalmente um cachorro da favela), conseguiu chegar no estágio máximo de um quiz show, se tornando assim estrela do momento na TV indiana. Ninguém entende (o público vai sabendo aos poucos) como Jamal pode saber todas as respostas, e a suspeita de fraude leva o apresentador a chamar e entregar o menino à truculenta polícia local.
O núcleo dramático é composto por Jamal, seu irmão Salim (Madhur Mittal) e Latika (Freida Pinto, famosa modelo indiana). Eles foram capturados ainda crianças por um gangster sem escrúpulos em cegar alguns dos meninos que explora para que ele consiga mais esmolas. Jamal se apaixona por Latika desde quando a conheceu, o mesmo dia em que sua mãe, muçulmana, foi assassinada por um grupo fanático hindu. O que explica a intensidade do amor que motiva suas ações, e que o impediu de seguir o caminho de banditismo adotado pelo irmão.
O requinte estético com que o novo filme de Boyle retrata a dura realidade dos ultrapobres indianos tem gerado um bom número de críticas, a maioria dedicada a traçar paralelos com Cidade de Deus. Há motivos para tanto, principalmente pela reincidência a alguns elementos visuais que fizeram a fama do favela-movie de Fernando Meireles. Não bastasse os vívidos grãos de cor e crianças desvalidas expostas a situações violentas, há uma tomada aérea de fuga entre barracos e... uma galinha correndo no meio da confusão.
Foi deixado de lado, no entanto, o paralelo com outros filmes do próprio Boyle que, mesmo colocando seu talento a serviço do cinema industrial, mantém a verve autoral. Isso nos conduz novamente a personagens desajustados em situações extremas, dispostos a tudo para fugir ou "se dar bem" (Cova rasa, Trainspotting, Por uma vida menos ordinária, Caiu do céu), em cenários exóticos e longínquos (A praia, Sunshine), além de um nojento retorno à sua fixação por fezes.
Se julgado nos parâmetros que fazem um bom filme de ficção, Quem quer ser um milionário? cumpre todos os quesitos. Mas o que o faz relevante transcende a tudo isso. Sua sustentação reside principalmente em ser representante de uma nova, e quiçá menos desigual, relação centro-periferia.
publicado no Diario de Pernambuco
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