segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Multidão e atropelos no cinema



A 4ª Janela Internacional de Cinema do Recife encerrou o primeiro fim de semana com público de quase cinco mil pessoas. O evento cresceu, não só em bilheteria, mas pela qualidade do que foi exibido, e pode ser considerado um marco. O Cinema São Luiz esteve lotado duas noites seguidas, sexta-feira com Febre do rato e sábado com Laranja mecânica, 1.200 pessoas em cada sessão, boa parte ocupando corredores, sentadas no chão. Como não ver beleza em um multidão atrapalhando o trânsito da Rua da Aurora para assistir a um filme? Sim, o Recife tem cinema de rua.

Problemas técnicos ameaçaram, mas não tiraram o brilho do evento. O som de Febre do Rato, filme tão visual quanto verborrágico, foi a principal vítima. Para entender o que o poeta vivido por Irandhir Santos dizia, muita gente apelou para as legendas em inglês. Foi um balde de água fria também para Cláudio Assis e equipe. Walter Carvalho, que pouco antes elogiava a beleza da catedral em que pisava, logo depois, do lado de fora, teceu duras críticas às condições de exibição do filme. Na cabine, Kleber Mendonça Filho fez o possível e lamentava o transtorno: “tenho carinho pelo filme de Cláudio. Aquilo foi uma violência contra mim que quero exibir os filmes da melhor forma possível”.

Kleber explica que o problema com o som foi consequência da falta de compatibilidade com o projetor Christie, trazido da França para a retrospectiva Kubrick. No sábado, às 17h, mais tensão no São Luiz: a lâmpada do projetor 35mm simplesmente não ligava, o que atrasou em 20 minutos a sessão de A guerra está declarada. Ontem, uma pane elétrica cancelou o programa matinal Janelinha, transferido para o próximo domingo. E até o fechamento desta matéria, às 17h, a sessão de Spartacus, prevista para as 15h, não havia começado.

Contratempos do tipo estressaram a dedicada equipe do evento e da Fundarpe e só são positivos no sentido de servir de alerta ao Governo do Estado: nas últimas semanas, eventos como o Play The Movie Coquetel Molotov, a pré-estreia de O Palhaço e agora com o Janela são a prova do potencial do Cinema São Luiz em injetar vida no centro da cidade. Após investimento de quase R$ 4 milhões para comprar e restaurar o São Luiz, é coerente esperar que ele esteja equipado à altura.

“O São Luiz é uma sala fantástica cuja estrutura técnica remonta a pelo menos 22 anos atrás. Quando fazemos ela se comunicar com um equipamento de 2011, acontece esse tipo de coisa. O São Luiz é um investimento que está dando certo, um espaço real, vivo, que as pessoas amam. Mas hoje um cinema precisa ser compatível com todos os formatos. O certo é chegar com o HD, conectar no projetor e pronto”.

No sábado à noite, contrariando a maré de contratempos, com Laranja Mecânica restaurado em digital 4k, o São Luiz se tornou um cinema dos sonhos. Um grande filme, imagem brilhante e cristalina. Na plateia em transe, gente sentada nos corredores e nem um pio sequer.

O bel prazer e a voracidade com que o Recife tem sido explorado pelo poder econômico, em contraste com a passividade ou conivência dos poderes públicos é um dos temas abrigados pelo Janela deste ano. Um pouco antes de Laranja Mecânica, um “vurto” de Marcelo Pedroso e Gabriela Alcântara com depoimento de gerente da Moura Dubeux provocou vaias, seguidas de aplausos. Um pouco antes, no Cinema da Fundação, a primeira sessão pública de [projetotorresgemeas] gerou um belo debate. “Tentamos chegar à dureza da realidade. A maioria jovem, mas não quer um discurso mais ou menos. Sentimentalmente posso falar ‘meu Recife’. Mas na prática, principalmente como pedestre, não sinto que a cidade é minha”, desabafa Tião, um dos 57 participantes da obra coletiva.

“O Brasil tem uma cidadania débil, herança do regime militar, que nos deixou com medo. Coletivamente, encontramos mais força para tratar do assunto”, diz Mariana Porto. Marcelo Lordello, recontextualiza. “Antes era a ditadura militar, hoje é do capital. Basta vez o jornal de domingo, os maiores anunciantes são as construtoras”.

Autor da trilha sonora, Tomaz Alvez tem calafrios ao imaginar uma cidade em que os programas se reduzam a ir a shoppings e à Livraria Cultura. Marcelo Pedroso abre o foco dizendo que o problema não é só do Recife, mas das grandes cidades, com projetos urbanísticos atrelados ao capital e sem passar por debate público. “No nosso caso, um projeto aplaudido e endossado pela própria prefeitura”. O debate continua amanhã, às 18h, no São Luiz.

A prefeitura foi à berlinda mais de uma vez. Na sexta à noite, Cláudio atacou a atual gestão. Durante a sessão, ele xingou o som ruim, mas no final saiu para a rua e subiu na Variant usada na filmagem de Febre do rato. Aplausos. Risos. A cidade pulsa,como diz Zizo, “reinventando sonhos, evitando pânicos”. Continua hoje, às 18h, com o Cinema de Rua no antigo Trianon. Acompanhe a programação pelo site do festival: www.janeladecinema.com.br

(Diario de Pernambuco, 07/11/2011)

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