domingo, 6 de novembro de 2011

Críticas sobre a cidade



Olhar para a cidade é um exercício que remonta aos primórdios do cinema. Em 1895, os irmãos Lumiére fizeram história como registro de operários saindo da fábrica. Da mesma forma, no começo dos anos 1920, Ugo Falângola e J.Cambiere filmaram as novidades do Recife moderno: o bonde, o movimento do porto, os armazéns. Um século se foi e um novo boom econômico está remodelando esse mesmo espaço. Mas ao contrário dos pioneiros do cinema, realizadores contemporâneos olham para as mudanças de forma bastante crítica.

Parte dessa produção foi reunida pela 4ª Janela Internacional de Cinema do Recife, que na próxima terça-feira promove o programa especial O cinema e o espaço urbano do Recife, que inclui cinco curtas. Considerando as diferentes abordagens e discursos dos filmes, que vão da leveza poética ao protesto radical, o debate entre cineastas e arquitetos deve render bons momentos.

Antes, na segunda-feira, o próprio Janela fará uma intervenção inédita: a partir da cabine do Cinema São Luiz, imagens serão projetadas na parede externa do antigo Cine Trianon, do outro lado do Capibaribe. “Será uma sequência de imagens que passam por filmes exibidos pelo Janela, clássicos como Hitchcock e Pulp Fiction, junto com imagens urbanas do Recife”, diz Cris Gouveia, que coordena a atividade. “Como fosse um farol, do São Luiz sairá uma ponte de luz. Do outro lado há o antigo Trianon, um prédio emblemático, que representa um vazio particular, que chama a atenção para outros silêncios, anônimos”.

Para falar dos caminhos e descaminhos do Recife enquanto cidade, o Viver entrevistou os diretores dos curtas [projetotorresgemeas] e Quarteto simbólico, que estreiam no Janela Internacional, e o arquiteto urbanista Milton Botler, coordenador do Instituto da Cidade da Prefeitura do Recife. Deste último, surge um bom começo de conversa: “Tenho inveja dos cineastas, que em poucos anos podem ter seu filme montado. Quanto a mim, vou morrer sem ver a cidade como a planejamos”.

Gigantes na mira dos artistas - “Meia duzia de magnatas decidem o destino da cidade”. A frase, dita em certo ponto do [projetotorresgemeas], revela uma preocupação legítima. No filme, realizado por quase cinquenta artistas, são dados nomes aos bois dos que agem sem controle público ou em desacordo com um plano racional de urbanização.

Ideias podem ser bombas. O alvo, como sugere o título, são as torres monumentais, cravadas em território onde um dia foi anunciado um complexo cultural. Seu correspondente fálico, o órgão sexual masculino em riste, é a metáfora nada suave adotada pelo filme para descrever a situação. Mas o curta não trata somente do objeto, mas das mentalidades que o permitiram existir. Enquanto uma faxineira olha, do alto da área de serviço, para Brasília Teimosa, do outro lado, alguém faz o oposto e mira a sombra das torres no mar. Na rua, a ocupação dos sem-teto no antigo prédio público é vista por dentro. Em breve, ali será um centro de compras. “É uma escolha política fazer projetos arquitetônicos para a classe A quando se sabe que o centro da cidade pode oferecer uma série de opções para quem vive o déficit habitacional”, diz Felipe Peres Calheiros, um dos integrantes do projeto.

Se o aspecto visual do curta é o de uma colcha de retalhos, um correspondente estético ao caos urbano do Recife, o discurso é afiado. Há momentos de ironia e outros de alguma ingenuidade. Em comum, o signo da denúncia. “Não há projeto público socialmente referendado para o desenvolvimento do Recife. O que há é um projeto particular das empreiteiras, que conseguem implementar sem debate ou passar por um órgão regulatório dessas ações”, diz Marcelo Pedroso, outro membro do coletivo.

Felipe explica que foi questão de coerência realizar o filme coletivamente. “A beleza está na forma como pesquisamos um processo do fazer cinematográfico tão questionador quanto o conteúdo. Sem alguém que dirigisse despoticamente, conseguimos dar uma identidade para a obra”.

Milton Botler, arquiteto do Instituto da Cidade, diz que a discussão sobre preservação urbana perdeu a legitimidade porque tem sido restrita à academia e especialistas, não faz parte do cotidiano da cidade. “Acho bom que o cinema coloque essas questões, que devem vir mais vezes a público”.

Botler relativiza as reações contra a verticalização. “Ela representa menos de 20% da cidade, passa longe das periferias e bairros populares. Não dá pra ficar no conservadorismo, em que nada se mexe. Temos que olhar para a cidade e a memória pela dinâmica das transformações. A Avenida Guararapes, por exemplo, arrasou quarteirões e casarões coloniais, mas abriu espaço para arquitetura moderna”.

Memória arquitetônica - “Acho interessante que esse desconforto urbano da cidade se reflita no cinema, mas vejo alguns problemas, no geral. Um deles é falta de uma relação maior com a memória - é tudo muito focado na atualidade. Outra coisa é uma visão exclusivamente social da arquitetura, o que exclui a estética. Vejo também uma repetição da questão da verticalidade. Esse tema já foi muito explorado e de modo geral, de maneira rasa”.

A análise é de Josias Teófilo, jornalista radicado em Brasília. Seu novo curta, Quarteto simbólico, trata da obra de Delfim Amorim, um dos principais nomes da arquitetura moderna. Seus projetos trazem marcas típicas, como o uso de cobogós combinados com azulejos brancos e azuis. No Centro do Recife, dois de seus edifícios são emblemáticos: o Santa Rita, atrás do Cinema São Luiz, serve de plano inicial para o filme, que de um detalhe dos azulejos abre para a Rua da Aurora; e o Barão de Rio Branco, também na Boa Vista, uma de suas construções mais preservadas.

Josias explica que Quarteto simbólico, título retirado de música de Villa-Lobos, vem da relação quádrupla da narrativa: “entre o Recife moderno e o contemporâneo, e de Delfim e seu filho, que nos dá o relato”. É de Luiz Amorim, considerado o maior especialista no assunto, que parte o viés acadêmico e afetivo adotado pelo filme. “Fiquei fascinado em estudar a herança de Amorim em dois aspectos: o do Recife, com relação ao patrimônio, e o do filho diante da obra do pai. Algo se conectou no filho dele que, na cidade em geral, não houve”.

Ao mesmo tempo em que denuncia o descaso coletivo de uma cidade com sua própria história, Josias busca uma delicada aproximação com a obra de Amorim. Nesse sentido, o uso da música (escrita por Ana Lúcia Altino sob um quinteto de Brahms) é fundamental. “Na época que escrevi o roteiro tinha acabado de ler o livro Eupalinos ou o Arquiteto, de Paul Valéry. Lá ele fala que a arquitetura e a música se assemelham em muitos aspectos. As duas nos envolvem”.

Serviço

Cinema de Rua - projeções no antigo Cinema Trianon
Segunda, às 18h

Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira.
Domingo, às 19h, no Cinema da Fundação
Segunda, às 17h15, no Cinema São Luiz
Sábado (12), às 20h, no Cinema da Fundação

Programa O cinema e o espaço urbano do Recife
Quarteto Simbólico, de Josias Teófilo; Eiffel, de Luiz Joaquim; Menino Aranha, de Mariana Lacerda; Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira; e [projetotorresgêmeas], filme coletivo. Sessão seguida de debate com os realizadores, e Luiz Amorim, Milton Botler. Mediação: Ângela Prysthon.

Terça-feira, às 18h, no Cinema São Luiz

(Diario de Pernambuco, 06/11/2011)

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