terça-feira, 28 de junho de 2011

Essa bebida tem história



Primeiro os animais; depois os índios; os colonizadores, vilarejos e cidades: Januária, Diamantina, Milho Verde, até chegar em Paraty. Investigação in loco sobre a rota secular que liga o norte de Minas Gerais ao litoral do Rio de Janeiro, o documentário Estrada Real da Cachaça coloca o cinema a serviço da antropologia etílica. Como o alambique para o caldo de cana, o filme destila cinema. Não à toa as sequências da produção da bebida, de evocação “vertoviana”, são plasticamente o que o filme tem de mais belo.

Talvez não há assunto mais brasileiro do que a cachaça. Como diz um dos depoimentos, são os muitos caminhos que levam à Estrada Real. Mas aqui somos conduzidos pela visão pessoal de Urano, fotógrafo que imprime sua intimidade com o assunto e faz interessante trabalho de montagem, mais visível no processo de moagem e fermentação da cana, além da fabricação do alambique.

Com depoimentos, personagens exóticos e belas paisagens, ele explica como a cachaça, normalmente fabricada nas usinas de cana, adentrou o norte de Minas Gerais.
Apesar de em 2008 ter sido aplaudido nos festivais de Locarno, Berlim e Rio de Janeiro (onde ganhou prêmio de melhor documentário), somente agora o longa de Pedro Urano entra no circuito nacional, um mercado difícil, em que os filmes mais interessantes quase não chegam ao público. No Recife, ele estreia sexta-feira no Cinema da Fundação e tem sessão especial hoje, com a presença do diretor.

Em seus melhores momentos, Estrada Real da Cachaça gera o efeito “road-movie”, por promover uma imersão em outra realidade, oculta em pequenas trilhas. Um universo invisível aos olhos de quem passa pelas rodovias. Para chegar a ele, é preciso sujar o pé de barro e adentrar pequenos vilarejos e antigos campos de mineração. É preciso seguir as pegadas dos tropeiros que no século 18 por ali passaram. Eis o reencontro com o Brasil colonial, onde a cachaça surge como principal combustível da corrida do ouro.

O filme recolhe fragmentos desse passado, registrados em película Super 16mm, que na montagem se mistura com imagens de arquivo. Especialistas (que só aparecem no final) pontuam a viagem, feita de encontros com personagens que contam, cantam e compartilham histórias e aforismos em torno da cachaça. Como este: “Cachaça limpa a memória, por isso vamos beber”.

Estrada Real da Cachaça é também uma viagem através da arte de construir imagens, ofício que Urano se dedica com mérito há pelo menos dez anos. Como diretor de fotografia, seu trabalho vem sendo reconhecido e premiado em filmes como Diário de Sintra (RJ), Superbarroco (PE), Áurea (RJ), Babás (SP), Ensolarado (MG), Praça Walt Disney (PE) e Faço de mim o que quero (PE). Agora é hora de conferir seu primeiro voo 100% autoral. A viagem é das boas.

Entrevista // Pedro Urano: "Há um interesse político em tornar visível essa história"

Você parece ter curtido muito fazer esse filme. Sempre gostou do tema?
Gosto de cachaça, não há como negar. E o filme também é a materialização desse gosto, mas tampouco se resume a isso. Não se trata de simples apologia, algo de que a cachaça não precisa. O filme é uma viagem no espaço e no tempo, um percurso, um caminho– uma estrada. A cachaça foi o meio que encontrei para acessar o imaginário do brasileiro. Um documentário através da cachaça.

Há cinco anos, você fez um curta sobre a Estrada Real. Foi um estudo para o longa. Há quanto tempo trabalha nesse projeto?
Depois de algum tempo pesquisando em casa, surgiu a necessidade de ir a campo. Tinha feito poucos filmes como diretor e precisava me convencer de que havia filme e de que era capaz de realizá-lo, para então seduzir ao projeto produtores, equipe e etc. A ideiaera conhecer lugares e situações, tirar algumas fotos, fazer uma pesquisa de imagens e sons. Pouco antes de viajarmos, comprei uma câmera de vídeo e resolvi levá-la comigo: serviria com um bloco de notas audiovisual. Quando voltamos pra casa, surpreendi-me com o material que havíamos rodado. Havia assistido há pouco ao Notas para uma Oréstia Africana, do Pasolini, um filme belíssimo que trabalha com essa ideiade ‘estudo preparatório’ para a realização de um outro filme, e resolvi montar um curta, que se chamou Estudo Etílico para Construção de uma Estrada Real. Não é uma versão menor do Estrada Real da Cachaça. Não há nenhuma imagem ou som comum aos dois filmes.

Você poderia contar a história da cachaça de várias formas. O que te levou à Estrada Real?
A história da Estrada Real surgiu de uma curiosidade muito grande sobre como Minas Gerais foi capaz de assumir a posição de destaque que inegavelmente possui hoje quando o assunto é cachaça. Afinal, Minas não é uma região com tradição no cultivo da cana-de-açúcar como são Rio, Bahia e Pernambuco, por exemplo. Então, por que Minas? A resposta a esse enigma surgiu quando encontrei um caminho calçado de pedras no interior do estado. Aquela 'estrada largada no meio do mato’, como alguém diz no filme, parecia sugerir que essa proeminência mineira se devia em grande parte à cultura bandeirante (e mais tarde tropeira) que descobriu, fundou e desenvolveu as chamadas Minas Gerais. Os bandeirantes e tropeiros, saídos de Paraty ou do Vale do Paraíba paulista sabiam que no sertão só se entra acompanhando da cachaça. E o filme, assim, se tornou também a história desse caminho, principal eixo de interiorização e desenvolvimento do país desde então.

Buscar a presença da cachaça na cultura brasileira a partir do recorte geográfico Minas-RJ não seria reducionista? O mapa também passa pelo nordeste...
Você tem razão. O mapa da produção e consumo da cachaça também passa pelo nordeste. E pelo norte, centro-oeste, sul... Cachaça se produz e consome em todo o território brasileiro. Quando comecei, pensava em viajar o país inteiro, mas logo percebi que essa vontade colocava em risco a efetiva conclusão do projeto. O Brasil é um país continental, e acabei por realizar esse recorte geográfico que é um pouco até onde conseguíamos chegar de carro. Com a descoberta das estradas reais a coisa encontrou uma direção e acabou se materializando assim: um filme sudestino. O norte e o sul de Minas, o quadrilátero ferrífero, o Vale do Paraíba paulista e o sul fluminense reuniam uma diversidade incrível de paisagens e situações mas, estranhamente, possuíam algo em comum.

O filme viaja de Minas ao RJ, no que parece ser a contramão do surgimento da estrada. Qual foi a intenção?
É a contramão do surgimento das estradas e da ocupação do território, mas é o sentido do escoamento da produção mineral, das riquezas, desde o século 18 até hoje. Além disso, a cachaça foi o primeiro produto industrial brasileiro a desbancar seus concorrentes no mercado internacional, tornando-se símbolo de um país que ainda não existia. Não é por acaso que tenha sido muito utilizada quando da elaboração de uma certa ideia de Brasil (por vezes extremamente estereotipada)pensada para seduzir estrangeiros. A cachaça sempre esteve presente na construção de uma auto-imagem ‘tipo exportação’ do país. Vi sentido no caminho apontar para o outro, para o oriente, o desconhecido, o mar. A colônia era toda voltada pra Europa, afinal. Mais do que isso, no entanto, percorrer o caminho nesse sentido permitiu que o filme materializasse uma busca pelas origens da cachaça, do país, do brasileiro. “A coisa começou em Paraty, então é lá que vamos terminar!”, pensei.

A fotografia (muitas paisagens e cores fortes) e as sequências de produção da cachaça, são lindas. Fale sobre essa concepção, de como ela é útil ao filme.
Isso aí foi fruto da pesquisa de imagens de que falei há pouco. Desde o início, coloquei-me a questão de quais eram as imagens e sons do filme que sonhava construir. É uma questão que me acompanha. Estou sempre a fazê-la quando começo um projeto. Prefiro trabalhar com imagens e sons a trabalhar simplesmente com um texto. Essa é a diferença do que fiz para uma reportagem, seja ela boa ou ruim. Claro que há falas no filme, mas essas falas não esgotam seu interesse no conteúdo do que está sendo dito. O que quero dizer é que durante toda conversa ou entrevista, havia uma preocupação constante com o tom de voz, o ritmo, enfim, com a materialidade sensorial de cada fala. Um ótimo exemplo disso é a sequência que, durante a montagem, chamávamos de tropeiro-fantasma (o filme tem muitos fantasmas). Acontece lá pelo meio do filme, quando começamos a falar sobre a atividade mineradora na atualidade. Ouvimos um discurso pausado, um tom de voz baixo, algo clandestino, vez por outra pontuado por explosões típicas da prospecção de minérios. Essa foi uma entrevista que fizemos no alto de uma montanha, logo após o pôr-do-sol. A serenidade do lugar e daquela hora do dia condicionaram o estado de espírito do entrevistado e isso me pareceu um contraponto interessante ao que estava sendo dito. Ou seja: há o discurso verbal, mas não é ele sozinho que estrutura a narrativa. Não é um filme puramente racional, ele mobiliza mais de um sentido. É um filme sensual, sensorial, endereçado ao corpo do espectador como um todo. Trata-se também de comunicar a experiência da viagem, as mudanças na paisagem, nos ambientes acústicos. O filme, que tem como patrono Exú, senhor dos caminhos e amante da branquinha, é também um filme sobre o movimento.

Você também trata das condições de quem trabalha na usina e nos minérios e de como essas pessoas vivem atualmente. Há um interesse político de denúncia?
Há um interesse político de colocar a atualidade em perspectiva. Tentar entender como chegamos a ser o que somos hoje – qual foi nosso percurso até aqui. A extração do minério de ferro é a atualização da atividade mineradora, que começou no século 18 e só se intensificou desde então. Com a diferença de que ouro se encontra em veios e o minério é a montanha inteira. Algumas das montanhas que orientavam bandeirantes e tropeiros na direção das minas já não existem mais: seguiram por trem até o porto para alimentar o crescimento chinês. Ainda exportamos minério in natura, sem beneficiamento algum. Isso sem falar no custo ambiental da atividade. Não se trata de denúncia, até porque estamos falando de algo público e notório, nem de se colocar contra o desenvolvimento ou a atividade mineradora. Trata-se justamente de tornar visível essa realidade.“A arte não representa o visível, ela torna visível” (Paul Klee). E então colocá-la em discussão: esse é o modelo de desenvolvimento que queremos?

O filme é sobre memória, e nisso as imagens de arquivo tem papel importante. Como foi executar essa parte do trabalho?
Teve uma coisa legal durante a pesquisa que é o seguinte: uma das principais fontes de informação sobre o período colonial são os relatos dos viajantes europeus que visitaram o Brasil. E esses senhores produziam aquarelas e desenhos que, quando voltavam pra Europa, transformavam em gravuras que eram publicadas acompanhadas de textos que justamente descreviam o que estava ali representado. Vi nesses livros proto-documentários extremamente subjetivos, muitas vezes fantasiosos, que me sugeriram uma abordagem poética para o filme. Afinal, o material mais, digamos, histórico a que se tinha acesso eram quase como relatos de sonhos! Esse tipo de abordagem mais criativa vinha muito a calhar também pois estava trabalhando com um passado pré-cinema, pré-fotográfico e não me seduzia a ideia de trabalhar com pranchas ilustradas num filme tão comprometido com o movimento. Foi aí que decidi criar imagens de passado, filmando em super 8 e trabalhando a película para que a textura da imagem comunicasse essa distância temporal. A maior parte das imagens de arquivo do filme fui eu mesmo que rodei, inclusive recriando alguns desenhos de Rugendas e Debret.

O longa está pronto desde 2008, foi duas vezes premiado e exibido em vários festivais. Por que é difícil conseguir espaço no circuito comercial?
Essa é uma pergunta para distribuidores e programadores de salas de cinema. Uma pergunta que deve ser feita. Eu apostaria em duas respostas: há poucas salas para o filme autoral brasileiro e o preço do ingresso é demasiado caro. Cinema é meio de comunicação de massa, arte para a multidão. Não pode resumir seu alcance somente aos estratos mais abastados da população. Do jeito que está, é inviável.

Como fotógrafo, você tem participado de vários filmes pernambucanos. Alguma atração especial pelo cinema feito aqui?
Por uma série de fatores como o apoio do Estado, uma aposta na distribuição dos recursos (e não na concentração, como é o caso do Rio) e, principalmente, pela existência de realizadores extremamente talentosos, o cinema pernambucano está, já há alguns anos, na vanguarda da criação cinematográfica do país. Há muito filme bom sendo produzido por aí, e é uma felicidade fazer um bom filme. Por isso, espero ter a oportunidade de ainda fazer muitos filmes em Pernambuco.

Em quais projetos tem trabalhado ultimamente?
Estou finalizando meu próximo documentário de longa-metragem, chamado simplesmente HU. É um documentário inteiramente filmado no monumental e inconcluso prédio modernista do Hospital Universitário da UFRJ, um edifício dividido ao meio: metade hospital, metade ruína. É um filme sobre o modus operandi da coisa pública no Brasil, sobre como o Estado funciona no país e sobre a importância que de fato damos a coisas tão fundamentais como a saúde e a educação públicas. Após décadas de abandono, a metade vazia do prédio sofreu um abalo estrutural e foi implodida em dezembro do ano passado. Nosso documentário se tornou assim a única imagem daquele lugar. O filme fica pronto no segundo semestre desse ano. E tem também os filmes que vou realizar como fotógrafo que, afinal, é minha ocupação predileta e principal.

(Diario de Pernambuco, 28/06/2011)

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