sábado, 11 de junho de 2011

Espelho da civilização



Em 1810, uma jovem negra de formas generosas e incomuns fascinou e chocou a sociedade europeia. Empregada de uma família holandesa na África do Sul, ela foi trazida a Londres sob promessas de riqueza, mas acabou como atração de circo, onde era apresentada como animal raro. Na França, se tornou objeto de entretenimento sexual da nobreza e chamou a atenção dos cientistas, que encontraram nela semelhanças com os símios. Morta em indigência, foi vendida para um museu que, até 1985, expôs seu esqueleto, cérebro e órgãos genitais em formol, além de servir de forma para estátua usada para aulas de medicina.

Eis a história da Venus Hotentote, trazida para o cinema pelo diretor tunisiano, radicado na França, Abdellatif Kechiche. Vênus negra (Venuus noire, França, 2010) será exibido amanhã no Festival Varilux (Cinema da Fundação) e é preciso certo estômago para assistir às 2h40 de projeção. As cenas de racismo explícito são grotescas. E o sofrimento de Saartjie “Sarah'” Baartman não tem fim.

A tortura se estende na relação espectador-filme. As sequências de circo e apresentações em palácios parisienses são mostradas em tempo real, nos obrigando a assistir a humilhação da pobre mulher. Imagem emblemática, uma senhora europeia monta na Vênus como um cavalo, ambas com seios à mostra. Em catarse coletiva, suas nádegas e vagina são oferecidas para quem quiser tocar.

São cenas chocantes, inimagináveis nos dias atuais. Mas das entrelinhas surge um incômodo, talvez porque o racismo continua em outras formas, não tão explícito nem disfarçado por discursos politicamente corretos. Em diferentes níveis, a cultura negra continua em alta na Europa, sempre ávida por produtos exóticos.

Vale ressaltar o belíssimo trabalho de fotografia, que confere dignidade ao corpo negro da atriz cubana Yahima Torres. É um nítido contraponto à forma com que a carne branca é mostrada: flácida, azeda, corrompida. Gente disposta a aplaudir qualquer bizarrice feita a quem atribuem inferioridade. E de se espantar quando estes demonstram ser tão ou mais humanos. É o monstruoso como espelho da civilização.

(Diario de Pernambuco, 11/06/2011)

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