Porto Alegre (RS) – O ímpeto libertário dos anos 60 teve tanto impacto no mundo da arte a ponto de alguns artistas se dedicarem questionar sua essência, seu modo de produção, sua finalidade. A mostra Horizonte Expandido, instalada desde ontem na capital gaúcha, reúne 16 criadores que ampliaram, e assim continuam, conceitos sobre o que é arte, para que ela serve e o significado do artista. A iniciativa, patrocinada pelo Santander Cultural, trouxe nove coleções internacionais, algumas inéditas no País. Longe de qualquer intenção sacralizante, a proposta é fazer contato não com as obras, mas com a vida e o pensamento de Robert Smithson, Bruce Naumann, Gordon Matta-Clark, Dan Graham, Ana Mendieta, Victor Grippo, Nancy Holt, Joseph Beuys, Bas Jan Ader, VALIE EXPORT, Dennis Oppenheim, Allan Kaprow, Marina Abramovic, Vito Aconcci, Chris Burden e Hélio Oiticica.
A exposição está montada em um belo palácio dos anos 1930 há 10 anos ocupado pelo Santander Cultural. Mesmo para quem está longe para fazer uma visita, vale a pena conhecer seu conceito, reaplicável em qualquer realidade. Ao contrário da maioria das exposições de arte, Horizonte Expandido não conta com visita guiada, roteiro, catálogo, material pedagógico ou qualquer outra “bengala” da estrutura expositiva convencional. A não ser pelo amparo teórico de uma pequena biblioteca com obras de referência, o visitante é convidado a decifrar a mostra por conta própria. “É uma museografia voltada para o pensamento. Por isso, eliminamos o máximo de interpostos que pudessem impedir o contato direto do público com as obras”, diz o artista gaúcho André Severo, curador da mostra ao lado de Maria Helena Bernardes.
A mostra é fruto da busca pessoal dos curadores por uma arte livre de convenções e de intermediações entre artista e público, desenvolvida no projeto Areal. “Reunimos artistas referenciais para a nossa formação, por terem questionado a função social de sua arte. E percebemos que todos pertencem à mesma época e hoje são considerados herméticos. Mas a verdade é que eles colocaram a arte em xeque de tal maneira que ficou difícil seguir em frente. Então passaram por cima deles”, diz Severo. “Não pensamos em obras, mas em sujeitos, atitudes, pessoas movidas por interrogações existenciais”, diz Maria Helena. “Eles não excluem o espaço de exposição, mas vão buscar o processo de criação em outros lugares”.
A primeira reação dos curadores, no entanto, foi negar o convite. Como trazer para o engessante espaço do museu artistas que trabalharam processos fluidos, efêmeros? A solução foi reunir registros desses momentos, em filmes, fotografias e textos. Em alguns casos, é possível ouvir depoimentos gravados dos próprios artistas. “Eles romperam com a ideia de que o artista produz para expor. E 99% dos artistas ainda pensam assim. Há uma pressão para que todo o mundo da arte contemporânea caiba nesse sapatinho”, diz Maria Helena.
Nesse sentido, Robert Smithson é um dos principais nomes e ganhou espaço central na mostra. Em 1970, sua busca pelo confinamento geológico em paisagens inóspitas gerou obras intrigrantes como uma gigantesca espiral de água e areia intitulada Spiral Jetty. “Ele procurou sua identidade longe da moldura social, que conforta a persona do artista”, diz Maria Helena. Uma sala inteira é dedicada a Joseph Beuys, que desenvolveu o conceito de escultura social, da vida enquanto arte. Se tudo está em mutação, é preciso moldar o pensamento, as palavras, o mundo. “Ele fez da arte um instrumento para chegar a conclusões de vida”, diz Severo.
Horizonte Expandido não traz objetos consagrados, como os parangolés de Hélio Oiticica. Prefere privilegiar imagens e textos dele, que falam diretamente ao espectador. Como no filme Héliophonia (2002), de Marcos Bonisson, colagem de imagens raras feitas ou protagonizadas pelo artista carioca. “Queremos desmitificar Oiticica. Ele está se tornando o grande produto da arte brasileira, mas tudo que ele não queria era ser objeto de fetiche. Ele agia diretamente na vida, em ações coletivas no morro da mangueira, no lixão, recolhia pedaços de asfalto, devolvia terra no aterro sanitário do Caju”.
De Alan Kaprow, criador do happening e pioneiro da performance, a mostra traz áudio, uma série de fotos e curiosos folhetos intitulados Como fazer um happening. Da artista ioguslava Marina Abramovic foi trazido um vídeo de 1980, em que explora os limites de uma relação a dois. Por quatro minutos ela empunha um arco, enquanto ele tensiona uma flecha apontada para ela. Em outros vídeos, é possível assistir Gordon Matta-Clark, o fatiador de edifícios, em ação; Oppenheim experimentando o transfer drawing, em que desenha nas costas de uma mulher, que através da sensação, reproduz o desenho numa parede; o touch-cinema de VALIE EXPORT, que em 1968 usava o próprio corpo para tratar da emancipação da mulher; e o bed place de Chris Burden , em que o artista se deita por horas em lugares públicos.
Santander propõe novo projeto para o Recife
Horizonte Expandido faz parte da linha de ação cultural adotada pelo Santander Cultural desde que a pernambucana Liliana Magalhães assumiu sua superintendência. “Temos uma inquetação permanente de fazer esse espaço existir com a cidade. Acreditamos que cultura é processo. Se não estivermos nos questionando, vamos nos ensimesmar. E o papel da gestão cultural é permitir a reflexão, o debate, a diversidade de visões”.
O suntuoso palácio onde a sede gaúcha do Santander Cultural está instalado impressiona. Ao mesmo tempo, a organização demonstra coragem em propor dinâmicas anti-convencionais. “Esse prédio é tão poderoso que, se a gente não viesse com essa atitude, em que pessoas se sintam protagonistas de um lugar contemporâneo, estariamos fadados a reproduzir um modelo estagnado, institucionalizado. E na cultura nada pode ser determinado como definitivo. Precisamos estar contectados aos processos de transformação para fazer algo de pertinente e legitimo”.
Desde outubro, Liliana trabalha em São Paulo onde, além da superintendência, responde por todas as ações culturais do grupo Santander. “Nosso conceito de cultura é o de ser incubadora. Lidamos com a dimensão cidadã da cultura, da consiência de bem coletivo e de pertencimento, da transfderência conhecimento, interação e empreendedorismo”. A revitalização dos Arcos da Lapa (RJ) e a organização de uma mostra em São Paulo sobre Antonio Dias, artista seminal da arte contemporânea brasileira, são duas ações atualmente em desenvolvimento.
No Recife, onde o Santander mantém o Espaço Cultural Banco Real, Liliana diz que em breve haverá um novo posicionamento, construído com o. “Não há nada definido. Esse é um ano de muita pesquisa, estamos reunindo as boas experiências do Real e do Santander, para criar um novo projeto de cultura. Há a limitação física do prédio, mas temos uma cidade inteira para nos estender. Se não, não é processo cultural. E não nos interessa atuar com uma visão de establishment. Onde houver transformação, nós queremos estar”.
(Diario de Pernambuco, 27/05/2010)
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