quinta-feira, 1 de abril de 2010

Ponto de virada



Apesar do sobrenome em comum, Nelson Xavier levou uma vida inteira para conhecer Chico. Ateu de formação comunista, ele atuou em meia centena de filmes, entre os quais Os fuzis (1964), Eles não usam black-tie (1982) e Narradores de Javé (2003). Após sete anos longe do cinema, ele está de volta no papel que considera ser o mais importante de sua carreira, o qual deve "reencarnar" em breve, no filme As mães de Chico, de Glauber Filho, diretor da cinebiografia de outro ícone do espiritismo brasileiro, Bezerra de Menezes - diário de um espírito (2007).

Chico Xavier, de Daniel Filho, entra em cartaz amanhã, dia de seu centenário de nascimento. Em Paulínia, onde concedeu a entrevista a seguir, o ator falou sobre a construção do personagem e como ele mudou sua maneira de ver o mundo. Quando soube que a reportagem vinha de Pernambuco, uma emoção a mais fez brilhar os olhos do artista, que viveu no Recife por volta de 1962, quando Participou ativamente do Movimento de Cultura Popular. "Foi um dos momentos mais gloriosos de minha vida", disse, com voz emocionada. Leia mais a seguir.

Entrevista // Nelson Xavier: "Chico me lembrou que o amor tem que estar mais presente"

Você interpreta Chico Xavier com muita fidelidade. Que estratégia você utilizou para construir o personagem?
Eu tentei interpretá-lo, não imitá-lo. Eu e Ângelo Antônio (que vive Chico Xavier na juventude) ensaiamos no sentido de parecer um com o outro, para poder fazer juntos, nos espelhar nele e em nós mesmos. Mas o que me conduziu foi a emoção, foi isso o que me fez sentir identificado com ele. E a única explicação para essa emoção é a presença dele. É uma coisa de contágio, de invasão, de posse. Por exemplo, teve um momento durante as filmagens que uma atriz no papel de mãe que trouxe uma carta do filho morto me disse: 'ele está do seu lado'. E eu caí em prantos. Foi essa emoção que me conduziu mais do que qualquer outra coisa.

Como você pontua Chico Xavier na sua carreira? É seu grande papel?
É. Porque ele transcende. Nenhum personagem muda necessariamente (o ator). Chico me fez mudar. Me lembrou que o amor tem que estar mais presente na vida da gente. A tolerância tem que excercer sim, viver a paciência, a entrega, a bondade, o amor. Não pode só evocar, tem que viver, assumir. Isso ele fez comigo.

Desde o início você foi pensado para ser o ator principal. Até então, quem era Chico Xavier para você?
Apenas um médium. Quando alguém me chamava de Chico algumas vezes eu respondi 'é a mãe'. Depois que li o livro com dedicatória do Marcel (Souto Maior, o escritor) dizendo que ele gostaria que eu fizesse o papel, li e fiquei tomado com aquela história sofrida. Fui invadido por uma onda de amor que me balançou. Quando vi estava lidando com um santo. E isso me invadiu a ponto de ultrapassar os limites de um trabalho artístico. Foi tão forte que não tem como negar porque é muito intenso, leva as lágrimas, paro de falar, pois transcende ao filme.

Você já fez mais de 50 filmes e após sete anos, volta a atuar para o cinema, onde viverá novamente Chico Xavier para o longa As mães de Chico
É verdade, tenho feito mais TV. Mas sou o que sou hoje porque quis dirigir cinema, esse foi meu início. Mas fiz pouca coisa ou quase nada porque não tenho lado empresário. Dei cabeçada e deixei pra lá, não sei sair à luta para captar recursos. Tenho um filme que captei e até agora não consegui grana para completar o filme. Lembrar é resistir, espécie de documentário de teatro com depoimentos de torturados políticos.

Antes do filme você seguia a doutrina espírita?
De jeito nenhum. Eu só acreditava que o kardecismo existe. Conhecia desde criança, minha mãe era espírita. Só mudei no sentido de achar que a gente morre e desaparece. Hoje acho que não, continuamos com a identidade, acho que voltamos.

Que momento do filme mais te marcou?
Existem vários momentos, mas o início é o que marcou mais, porque eu rezo e penso na minha mãe. (pausa para chorar) Eu resgatei a relação com minha mãe porque ela sempre quis que eu aderisse ao espiritismo, eu sempre zombava. Por isso, as duas vezes que eu rezo no filme eu não pude deixar de lembrar disso. Ele disse que a mãe, depois de desencarnada, ensinou o caminho.



Outro personagem emblemático que você fez foi Lampião, em seriado de TV de 1982.
Com ele também teve essa coisa de posse. Mas foi diferente, chamei ele de general do povo, ele tinha uma visão radical de fazer justiça com as próprias mãos. E tinha o amor com Maria Bonita. Quando vesti os óculos dele, teve uma semelhança com essa invasão do Chico. Os dois são reais, né? São brasileiros, não são ficção.

Que lembranças você guarda do Movimento de Cultura Popular?
Muita gente boa estava lá, como Germano Coelho e Paulo Freire. A gente via o futuro, éramos inocentes, achávamos que isso ia melhorar o Brasil. Foi um momento muito lindo. A composição de católicos e comunistas tinha dado certo, rendeu um verniz cultural que permitiu um trabalho de conscientização, de alfabetização e de agitação política. O Brasil era outro, não era essa pátria conformista que a gente assiste hoje. Era sociedade viva, querendo mudar. Tinha uma juventude participando do processo político, operários indo pra rua. O MCP que foi modelo para o CPC, era um organismo fantástico.

O MCP vai completar 50 anos. Você acha possível retomar o espírito daquela época?
Eu acho difícil, mas acho que deve ser tentado. O Brasil é outro, está muito conformista. Estudantes não tem organização. A perplexidade da esquerda e 20 anos de ditadura amorteceu a capacidade de resposta do povo brasileiro.

(Diario de Pernambuco, 01/04/2010)

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