quinta-feira, 22 de abril de 2010
Alice recria seu mundo
O coelho apressado, o gato que ri, o Chapeleiro Maluco, a Lagarta Azul, a Rainha Vermelha. Alice no País das Maravilhas (Alice in the Wonderland, EUA, 2010), primeira incursão de Tim Burton no cinema 3D, não é um retorno nostálgico apenas para nós, leitores e observadores da fantástica obra de Lewis Carroll. É também para Alice, a garota loira de olhos azuis, que na infância deu vazão aos sonhos e recriou a realidade com seus próprios termos. Aos 19 anos, prestes a casar com o filho do antigo sócio de seu falecido pai, a garota recorre à fantasia, primeiro como proteção imediata, para então se estabelecer enquanto mulher adulta, num mundo regido por convenções sociais.
A estratégia de lançamento é ostensiva. Após exibições exclusivas em Londres e muito rebuliço no mercado de produtos originais (livros de Carroll em edições instigantes) e derivados, o filme entra amanhã no Brasil, segundo informações do site Filme B, em 450 salas (80% dubladas), 129 delas em Digital 3D. Autor de prestígio, Burton empresta sua marca à Disney, mais como designer que como cineasta capaz de tornar um gato malicioso, uma rainha que corta cabeças e uma lagarta de olhos vermelhos, que fuma narguilé numa floresta de cogumelos, algo permitido para o público acima de dez anos.
Com roteiro que funde os clássicos As aventuras de Alice no País das Maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou por lá, a Alice de Burton (Mia Wasikowska) se apavora ao perceber que a vida não mais corresponde à generosidade dos sonhos infantis e seu destino é fazer parte da corte dos normais. Momento em que um coelho no jardim a conduz à toca, porta de entrada/fuga para o Underworld (Mundo Subterrâneo), onde poderá reprocessar a situação e lidar com a dura realidade. Símbolo do desajuste em que vive, na ante-sala, assim como durante a aventura original, a garota vê suas proporções aumentarem e diminuirem, de acordo com necessidades impostas por situações inóspitas. Alice é conduzida pelos irmãos Tweedle ao coelho, do coelhoao gato, do gato ao lagarto, do lagarto à mesa de chá do Chapeleiro Maluco (Johnny Deep), que surge como protetor e ser oposto ao azedo pretendente do mundo real.
Escondidos sob toneladas de efeitos digitais, Deep e os atores fazem sua parte. Com a cabeça inchada e o corpo reduzido, Helena Bonham Carter é a Rainha Vermelha, figura temperamental e carente que domina o Mundo Subterrâneo a partir do medo, mantido a cada vez que grita "cortem a cabeça". Anne Hathaway é a Rainha Branca, açucarada imagem da bondade e harmonia infinitas, moldada por Burton como uma boneca de porcelana com braços, cabeça e tronco que se movimentam num bloco único. Confinada em seu castelo, a Rainha Branca depende do Chapeleiro e de animais falantes para retomar o reino. Ciente da presença de Alice, a Rainha Vermelha envia seu escudeiro e uma tropa de copas para capturá-la. O embate entre cartas de baralho e a trupe de heróis se dá num sugestivo tabuleiro de xadrez.
Tim Burton, dedicado criador de fábulas modernas (Edward Mãos de Tesoura, A lenda do Cavaleiro Sem Cabeça, A Noiva-Cadáver e Sweeney Todd), notório esvaziador de clássicos em embalagens de luxo (Batman, O planeta dos macacos, A fantástica fábrica de chocolate), ao vestir a camisa-de-força da Disney coloca Alice no segundo grupo. Se há uma primeira viagem em seu novo longa, ela diz respeito aos efeitos 3D, que evitam o carnaval ao utilizar mais a profundidade do lado de trás da tela que o espaço acima das cadeiras da sala de exibição. O que, com exceção da cena da queda no buraco e lanças dos soldados de copas que vez em quando "furam" a tela, acrescenta elegância e fascínio ao mundo de Alice.
"O sonho é meu", repete Alice para si, na busca de coragem para encarar perigos imaginários e reais. Em meio à excitante paleta de formas e cores que nos próximos meses ditará o mundo da moda onde fica o cinema, nossa sala dos sonhos, divã a reprocessar a dura realidade?
(Diario de Pernambuco, 22/04/2010)
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