segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Entrevista // Felipe Peres Calheiros: "Precisamos de condições iguais"



Em conversa caudalosa, a frase quase passa despercebida: “meu esporte é problematizar”, diz Felipe Peres Calheiros. Daí seu interesse pela dimensão social e política da realidade, representada em filmes de viés humanista. A definição também vale para seu próprio trabalho, colocado em crise a cada realização. A última, o curta-metragem Acercadacana, foi eleito o melhor do último Festival de Brasilia. Desde então, percorreu mais de 20 festivais. Hoje, amanhã e quarta-feira, ele será exibido no Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o maior do país. Até outubro, vai para Biarritz (França), Santiago (Chile) e Suécia.

Felipe explica que o drama de Dona Francisca, agricultura ameaçada de perder a terra em que mora há 40 anos para um poderoso grupo usineiro, aponta para algo maior. “Temos vivido um boom econômico e uma aparente satisfação social com empregos e índices econômicos, mas para nós, isso não reflete em caminhos interessantes”.

O “nós” a que ele se refere é o Coletivo Asterisco, com quem desde 2006 desenvolve projetos como Mais um encontro em família, sobre a famosa noite cubana do Clube Bela Vista, no Alto Santa Terezinha. E Reforma universitária, o que eu tenho a ver com isso?, fruto de seu engajamento no movimento estudantil que participou durante os estudos nas faculdades de Direito (UFPE), Administração (UPE) e Rádio e TV (UFPE).

Antes, produziu um curta sobre um grupo quilombola que queria conhecer a praia. Assim nasceu Até onde a vista alcança, que desde 2007 percorreu 50 festivais em 16 países. Foi sua primeira experiência com a câmera, que veio a definir sua vida profissional. “Fizemos tudo em duas pessoas”.

A urgência em realizar e injetar dinamismo aos projetos levou Felipe a colocar no ar o site Vurto.com.br, criado em parceria com Marcelo Pedroso, outro realizador marcado pela inquietude estética e política. Aliados à educação, forma-se o tripé no qual Felipe pretende desenvolver os próximos trabalhos.

Como surgiu o projeto Acercadacana?
Em 2008 fui para Holanda com o Até onde a vista alcança e fiquei pasmo porque Lula esteve lá um pouco antes com uma campanha pelo uso do biocombustível. Havia faixas defendendo o combustível verde, como se o etanol fosse a salvação ecológica e social do mundo. E isso não é verdade, pois sabemos quais são as condições que o monocultivo da cana oferece para as pessoas e para o meio ambiente. Aí pensei em fazer um debate no cinema sobre isso. Fomos pesquisar junto com a Comissão Pastoral da Terra e ela apontou Dona Francisca entre os agricultures em situações semelhantes. Quando cheguei na casa dela, percebi que a situação era urgente e começamos a filmar. Fizemos três visitas e no começo de 2010 sentei com Paulo Sano, escrevemos o roteiro e montamos o filme.

Tudo sem edital?
Sem edital. Seria incoerente não realizar o filme, ao perceber a situação daquela agricultora que mora há 40 anos naquela terra, que tem uma ação à espera de julgamento para se confirmar o usucapião a que tem direito.

E o retorno dessa discussão?
Ainda estamos digerindo isso. A aceitação em festivais não foi tão ampla e não tivemos repercussão direta para o caso de Dona Francisca. O Tribunal de Justiça de Pernambuco não se propôs a julgar o caso de forma mais célere. Circular em festivais pode motivar pessoas a repensarem sobre o etanol, mas será que isso é o que devemos continuar fazendo? Agora que ele está aprovado pelo Funcultura para se tornar três episódios para a TV, estamos passando por esse debate, que também parte de entender como a cadeia produtiva do etanol e o desenvolvimentismo no Brasil tem se pautado.

E a ideia é interferir nisso de alguma forma.
Isso. E a questão é estende o filme para a TV ou fazer outra coisa. Tenho percebido que a educação é um caminho tangível e atraente para relacionar cinema com mudança, com novas atitudes. Isso é um indicativo do que vem por aí, uma tentativa paulofreireana de fazer cinema.

Acercadacana tem uma sofisticação estética e linguagem que o diferencia da ingenuidade de certos filmes de denúncia.
Procuramos conciliar ritmo, montagem e composição do filme, para representar de forma digna a história de Dona Francisca e sua luta para ganhar visibilidade. E de uma forma mais ampla, tentamos caminhar no sentido de construir uma narrativa coerente, partindo da compreensão de que cinema se constitui espaço de representação do mundo e portanto, necessariamente ligado a questões de poder. Ele tem papel fundamental no questionamento dessas relações, que estão mudando. Hoje temos uma liquefação da forma como as elites e os espaços de poder se organizam, e o cinema que vai tratar dessas questões não pode ficar restrito à mera denúncia. Por isso bebemos do cinema experimental, da ficção enquanto estudo estético, procuramos ferramentas de construção do cinema. Se queremos lidar com os mecanismos de poder, precisamos entender como funciona esses espaços no cinema, para levar uma mensagem e isso tudo fazer sentido pra gente. Isso passa por questões éticas, estéticas, pessoais.

Como resolver a questão ética de transformar um assunto delicado em produto?
Tem uma série de referências que lastreia nossa prática audiovisual, que vai muito além do cinema. Paulo Freire por exemplo, para mim é fundamental. Ele diz que ninguém chega para uma conversa sem conhecimento prévio, o que nos faz estabelecer um lugar de igualdade. Por exemplo, a Associação Quilombola do Sambaqui precisava construir uma sede. Fizemos 500 cópias do DVD, que foram vendidas na cidade de Panelas. Dona Francisca está esperando para fazer a casa dela de alvenaria. E tivemos a ideia de fazer cópias de Acercadacana. Já vendemos algumas e o dinheiro está sendo arrecadado pra ela construir a casa.

Como é circular nos festivais?
É um pouco complexo. Festivais oferecem diversas possibilidades de interagir com plateias. Há os que colocam a mim, curta-metragista iniciante, em hotel de luxo no Amazonas, junto com figuras do cinema hollywoodiano. E os que colocam todo mundo no mesmo quarto, mas promove uma discussão que faz com que o filme ganhe outra dimensão. Trafegar em festivais assim te reconstrói. Acho que isso agrada todo mundo que faz cinema com essa intenção. Por outro lado, fazemos concessões como dormir em casa de taipa num quilombo para gravar um filme, para depois levar um quilombola dormir em um hotel em Amsterdã. Isso gera muitas questões pessoais.

O que te levou a colocar no ar um site para veicular pequenos filmes?
O Vurto é parte disso que a gente está falando, crítica aos festivais, a uma estrutura como o cinema independente tem se comportado, produto que tem que chegar a uma distribuidora para pagar as contas de casa e de fazer cinema de uma forma mais livre e realmente independente. Acho que essas insatisfações que motivaram eu e (Marcelo) Pedroso a procurar um lugar diferente dentro dessa mobilidade do mundo, a internet se tornou o espaço para expressar essas críticas, questionamentos, espelhos, está em construção.

Considerando que os financiadores talvez não queiram se envolver em polêmicas, como viabilizar projetos que abordam assuntos difíceis, que mexem com gente poderosa?
Esse é um dos riscos que fazem parte dessa escolha, mas o principal deles é o risco de vida, que não chegou a mim diretamente, mas sim a Dona Francisca, quando estávamos lá e fomos abordados por seguranças armados. Quando exibimos, e amigos dizem que fosse 20 anos atrás, não estaríamos vivos. Sabemos quais são as condições de segurança para pessoas dispostas a enfrentar os lugares de poder. Não faltam exemplos. Este ano, 15 pessoas foram assassinadas por questões ligadas à terra. Quanto ao financiamento, precisamos de condições iguais tanto para obras que façam propagandas governamentais quanto obras que falam o contrário. Vozes múltiplas precisam ser ouvidas numa democracia.

Fale um pouco sobre o documentário sobre Zuleno.
O filme está em finalização. Diego Medeiros, que hoje é o produtor executivo dos nossos projetos, me convidou para fazer um filme sobre Zuleno, que era amigo dele. Pude conhecer um pintor que levou uma vida um tanto singular, que trabalhou com Lula Cardoso Ayres, tem quadro bem cotados, mas vivia na simplicidade, doava o dinheiro que ganhava para instituições. É um filme que não tem enfrentamento político, mas que me cativou porque tem um sentido de questionamento do mundo.

Você se apresenta como documentarista, não cineasta. Não se vê fazendo ficção?
Está cada vez mais difícil definir o que é ficção, mas um dos episódios de Malunguinho, série para a TV que está em fase de produção, será com recursos ficcionais, para representar o enfrentamento do povo quilombola do século 19 e as elites açucareiras.

Quais os próximos projetos?
Tenho dois roteiros novos. Blecaute, sobre sombras, escuridão, que existem tanto no fazer cinema quanto numa comunidade quilombola, que nascem em imagens que fiz durante um blecaute em Conceição das Creoulas e outro sobre sexualidade, roteiro em gestação que chama-se Viagem ao corpo interior, sobre homossexualidade, heterossexualidade e as diversas formas de interação cultural que existem do litoral ao sertão. Os dois filmes caminham para essa igualdade dialógica freireana, de discutir o poder da imagem e como nos relacionamos com o lugar de sermos vistos.

(Diario de Pernambuco, 28/08/2001)